O enigma e o demógrafo

25 de agosto de 2013

O enigma e o demógrafo

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-80/questoes-de-familia-sociedade/o-enigma-e-o-demografo

Vida de professor mineiro é um espelho da virada populacional que ele ajudou a detectar e que explica boa parte do desemprego baixo, mesmo em época de crescimento fraco

por RAFAEL CARIELLO

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Na manhã da Quinta-Feira Santa, em março, o professor José Alberto Magno de Carvalho levantou-se cedo para pescar. Munido de um caniço simples, sem molinete, levava dois tipos de isca – milho verde, guardado num pequeno pote de vidro, e uma espécie de massa de pão, feita com farinha de trigo, leite e fubá.

Caminhou despreocupado, como fizera na véspera, até o rio parcialmente represado que corre nos fundos da sede de sua fazenda, em São Vicente de Minas, um pequeno município de 7 mil habitantes distante quatro horas de carro de Belo Horizonte. Havia chegado à cidade, onde também nasceu e passou a infância, dois dias antes.

Carvalho, um senhor alto, magro, de voz grave e sobrancelhas grossas, é tratado por colegas e ex-alunos como um dos pais da demografia brasileira, a ciência encarregada de medir e estudar a dinâmica populacional humana. Participou da criação dos cursos de pós-graduação ligados à disciplina, nos anos 70, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, hoje reconhecida como um centro de excelência na área. No final dos anos 90, tornou-se o primeiro brasileiro – o único, até o momento – a ser nomeado presidente da associação mundial de demógrafos, a iussp (sigla em inglês para União Internacional para o Estudo Científico da População).

Aos 72 anos, contudo, o professor mineiro parece se orgulhar mais de sua origem e de seu time de futebol do que da carreira acadêmica. Quem deixa a estrada de asfalto para trás e toma o caminho de terra que conduz à Fazenda Saudade se depara, diante da casa térrea principal, com dois mastros imponentes. No mais alto tremula o estandarte do Clube Atlético Mineiro. Um pouco abaixo se avista a bandeira do Brasil.

Quando está ali, o demógrafo costuma passar as tardes de folga na varanda. De sua cadeira divisa um mar de montanhas que se perde no horizonte. Conta histórias longas, fazendo algum suspense. As pausas são sempre seguidas por uma admoestação ao interlocutor: “Vai escutando!” É também comum ele se referir, com vaidade mal disfarçada de modéstia, à própria disposição moderada e cautelosa, sobretudo quando descreve embates ideológicos. “Eu, como bom mineiro, nunca fui maniqueísta.”

No final dos anos 70, José Alberto de Carvalho ajudou a identificar uma reviravolta, para muitos inesperada, na dinâmica demográfica do país. Com base nos imprecisos dados disponíveis, notou que as mulheres brasileiras haviam passado a ter um número cada vez menor de filhos. O tamanho médio das famílias diminuía e, tudo indicava, continuaria a cair. “Foi uma surpresa”, lembrou, naquela manhã, enquanto colocava isca no anzol. “Na época, quase todo mundo acreditava que continuaríamos a conviver com um rápido crescimento populacional.”

Parte dos efeitos dessa mudança só começou a ser sentida nos últimos anos. Um número crescente de pesquisadores tem associado o comportamento atual da economia à redução na taxa de fecundidade das mulheres brasileiras. Para eles, a inflexão demográfica iniciada nos anos 70 explica, em grande medida, o desempregobaixo, mesmo quando o crescimento rateia, acompanhado de alta na renda e queda da desigualdade.

 

tarde, o demógrafo deixou para trás a pescaria e o dolce far niente. Ia visitar a mãe. Aos 91 anos, ela ainda vive em São Vicente de Minas. Na casa simples, próxima à praça central e à igreja, dona Mariquinha, como é conhecida, recebia os numerosos membros da família, que aos poucos chegavam para a Semana Santa. Ela teve, ao todo, doze filhos, gestados entre os 18 e os 40 anos de idade. A primeira menina morreu pouco tempo depois do parto. José Alberto veio em seguida e se tornou o primogênito.

Sentada à mesa comprida de madeira coberta com uma toalha de plástico, dona Mariquinha tomava sem pressa uma xícara de café com leite, indiferente à algaravia dos filhos e netos. Falavam todos ao mesmo tempo na sala de jantar, onde um retrato da Santa Ceia pende da parede. Acomodado numa poltrona perto da janela, Carvalho fumava. A figura longilínea – mede quase 1,80 metro – e triste – suas sobrancelhas com frequência se unem numa expressão melancólica ou inquisitiva, formando um acento circunflexo, um telhado de duas águas sobre os óculos – fazia lembrar um dom Quixote sem barba.

Após dar duas batidinhas com a mão no meu braço, dona Mariquinha apontou para o filho e me disse, como quem confia um segredo: “Ele me ajudou a criar os outros.” Uma das irmãs, Ângela, pescou a conversa e completou: “O Zé Alberto foi o arrimo nosso.”

O demógrafo é casado, desde os anos 60, com Nazaré, uma senhora simpática e agitada, de 69 anos. Juntos, tiveram quatro filhos e sete netos. “E não vai passar disso”, Carvalho me assegurou, com sua voz de barítono. “Essa história de família grande acabou. Mesmo nos lugares mais pobres. Você vai a uma favela e ninguém tem mais de três filhos. Irmão, no futuro, vai ser uma coisa rara.” Tratava os parentes mais próximos e a mudança nos tamanhos das diferentes gerações de sua família como exemplares de seu objeto de estudo. “É a história do Brasil.”

A diminuição do número de filhos, ele disse, aconteceu primeiro entre os mais ricos, a partir de meados dos anos 60, chegando em seguida, com atraso inversamente proporcional à renda, ao restante da população.

A cadeia de eventos que liga a queda na taxa de fecundidade a seus efeitos sociais e econômicos atuais pode ser apresentada de forma esquemática. Nos anos 80, o número de filhos por mulher caiu de maneira dramática, mesmo entre as famílias pobres. Nos anos 90, pela primeira vez, o número absoluto de crianças parou de crescer, resultado da queda na fecundidade uma década antes. Ficou assim mais fácil, para o poder público, colocá-las quase todas na escola.

No final dos anos 2000, essa mesma geração chegou afinal ao mercado de trabalho; um número declinante de jovens, mais bem-educados, contribui hoje para a inédita escassez de trabalhadores pouco qualificados. O desemprego se mantém baixo, a renda aumenta e a desigualdade cai. Segundo essa lógica, o Brasil da era Lula começou a tomar forma duas décadas antes da chegada ao Planalto do ex-sindicalista, também ele integrante de uma família numerosa.

 

queda no número médio de filhos por mulher representa a etapa final daquilo que os pesquisadores chamam de “transição demográfica”. “A transição é o feijão com arroz de todo demógrafo”, me disse Eduardo Rios-Neto em sua sala no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, em Belo Horizonte.

Rios-Neto, chefe do Departamento de Demografia, tem 57 anos e foi aluno de José Alberto de Carvalho. Tem olhos claros, rosto redondo e cabelo partido de lado. Naquela manhã, no início de abril, carregava três canetas no bolso da camisa de botões com mangas curtas. A aparência certinha de engenheiro não se estende à sua sala. Papéis e livros sobre as duas mesas do amplo gabinete pareciam ter sido revirados por ladrões ou pela polícia.

“A transição demográfica é um fato estilizado a partir de uma regularidade empírica; algo que você observa em quase todos os países”, ele disse. “Num primeiro momento, você tem mortalidade alta e fecundidade alta, com crescimento populacional próximo de zero.” É o caso da Europa antes da Revolução Industrial. “A mortalidade começa então a cair, numa velocidade maior do que a queda na fecundidade, o que eleva o ritmo de aumento da população. Depois cai a fecundidade e, no último momento, as duas taxas são baixas. É quando você passa a ter crescimento zero ou negativo.” É desse patamar, no qual já se encontram muitos países ricos, que o Brasil está se aproximando.

Demógrafos concordam hoje que tais etapas são comuns a quase todas as sociedades, mas o tempo de duração e a intensidade dos efeitos de cada uma delas variam. O caso brasileiro, no século XX, foi muito mais rápido do que aquilo que se conhecia, historicamente, em países ricos. “Nós fizemos em quarenta anos o que a Inglaterra fez em 120”, disse Carvalho.

Em grandes linhas, é o processo de urbanização e de modernização da sociedade que explica a transição demográfica. A partir da década de 30, com os avanços da medicina, ações de saúde pública e alguma melhora nos padrões de vida, a mortalidade começou a cair no Brasil. Ao mesmo tempo, as famílias continuavam a ter um número grande de filhos, superior, em média, a seis para cada mulher até os anos 60. Como resultado da alta fecundidade, acompanhada da queda na taxa de mortalidade, a população brasileira cresceu de maneira rápida entre os anos 40 e 70. Falava-se, à época, em “explosão demográfica”.

A razão de fundo para o que veio a seguir, a queda da taxa de fecundidade, é a racionalidade econômica: a partir dos anos 70, com a urbanização e as pressões de custo de vida associadas a ela, os casais no Brasil escolheram ter um número cada vez menor de filhos.

Mas outras razões, ligadas à modernização da sociedade, reforçaram os estímulos econômicos para a diminuição no tamanho das famílias. “A ‘mão invisível’ da economia não funciona no automático; ela tem que passar pela consciência das pessoas”, disse Maria Coleta de Oliveira, professora do Departamento de Demografia da Unicamp. “No caso do Brasil, acho que a organização do trabalho foi fundamental. A mulher é o pivô dessa história. Nas formas não capitalistas de trabalho, elas podiam entrar e sair da atividade produtiva, e ter mais filhos. Com o assalariamento, inclusive no mundo rural, isso acabou. Passaram a ter uma jornada fixa. As pressões para a restrição ao número de filhos aumentaram.”

Eduardo Rios-Neto também chamou atenção para o papel da tevê. Nos anos 90, ele participou, ao lado de outros demógrafos e cientistas sociais, de uma pesquisa que buscava captar a influência das telenovelas sobre o tamanho das famílias. “A queda na fecundidade tem a ver com o cálculo econômico, é óbvio. Mas descobrimos que a Rede Globo teve também um efeito de modernização e secularização da sociedade, a conta-gotas.”

As famílias que apareciam na tela nunca eram grandes, segundo ele por razões práticas. Era difícil escrever tramas para núcleos familiares maiores, e também não era fácil dirigir as crianças. O padrão televisivo teve impacto em todas as regiões e todas as classes sociais.

Tudo somado, a taxa de fecundidade despencou. Em 1980, as mulheres brasileiras ainda tinham, em média, 4,4 filhos ao longo de toda a vida. Em 1991, já eram apenas 2,7 filhos. No último Censo, feito em 2010, cada mulher tinha em média 1,9 filho, já abaixo da taxa de reposição da população, que é de 2,1 filhos por mãe.

 

s nove e meia da manhã, na Sexta-Feira da Paixão, uma pequena multidão já se acomodava no interior ventilado da igreja que ocupa o centro da praça e da vida religiosa em São Vicente de Minas. A luz, intensa lá fora, invadia o ambiente filtrada por grandes janelas basculantes, pintadas com as cores translúcidas dos vitrais. Cerca de 400 pessoas sentadas, e outra centena em pé, esperavam a cerimônia de confissão comunitária.

Do lado de fora, o pedreiro João José da Silva, de 84 anos, fazia hora enquanto o padre não dava o ar da graça. Disse ir diariamente à missa. Naquele dia, havia ajudado a montar a cruz de quase 3 metros que bloqueava a entrada principal da igreja. Estava vestido com roupa de domingo: camisa polo para dentro da calça social e sapatos lustrosos.

Alguns minutos mais tarde, a procissão da Via Sacra já se aproximava da última estação, encenada diante da cruz erguida pelo pedreiro. Um homem vestindo uma túnica branca levava, à frente, um crucifixo de madeira preta. Atrás vinham o andor com a imagem de Jesus e uma banda de instrumentos de sopro. O surdo marcava o passo da toada lenta e fúnebre.

A mãe de seu João, ele disse, teve doze filhos. Ele próprio, viúvo há 22 anos, teve cinco, que lhe deram apenas dois netos. “Hoje o povo não quer mais família grande, não”, explicou. “Está evitando mesmo. Tem um, dois filhos, no máximo. Eles falam que ficou mais difícil de criar.”

O fenômeno, nacional, se repete mesmo numa cidade católica como São Vicente. O uso de métodos contraceptivos “artificiais” é, para a Igreja, pecaminoso, lembrou José Alberto de Carvalho numa conversa que tivemos, dias mais tarde, em Belo Horizonte. “O interessante”, ele disse, “é que, quando as mulheres decidiram ter um número menor de filhos, fizeram isso apesar das discussões teóricas, apesar das recomendações da Igreja e até mesmo da dificuldade de acesso à pílula anticoncepcional.”

 

egundo o economista Samuel de Abreu Pessôa, pesquisador da Fundação Getulio Vargas, a queda na taxa de fecundidade provocou uma revolução no mercado de trabalho brasileiro.

Pessôa, um paulistano de 50 anos, alto e quase calvo, tem pelo menos duas coisas em comum com José Alberto de Carvalho. Confere importância central à dinâmica demográfica para explicar a história econômica, e aprecia cachaça. Ao me receber para o almoço em seu apartamento, num bairro de classe média em São Paulo, serviu uma tradicional marca de aguardente artesanal, produzida em Minas.

O que se vê agora no mercado de trabalho, ele disse, é uma espécie de imagem invertida da lógica que marcou a maior parte da história brasileira. Até os anos 80, o rápido crescimento populacional, associado ao pequeno investimento em educação pública, criou uma oferta constante de mão de obra pouco qualificada, mantendo os salários baixos.

Numa das apresentações que costuma fazer para clientes e colegas, Pessôa mostra um gráfico que representa a evolução do gasto estatal com educação no país ao longo do tempo. Esse investimento se manteve baixo entre as décadas de 50 e 70, justamente quando a população mais crescia, e só passou a subir de maneira contínua a partir dos anos 80.

Mesmo o pouco dinheiro destinado à escola favorecia os mais ricos. Na década de 50, cada estudante universitário recebia 75 vezes mais recursos que um aluno do ensino fundamental. O Estado barrava, assim, a melhor chance de mobilidade social para os mais pobres – e forçava a pobreza a reproduzir mais pobreza.

“Era um sistema totalmente maluco”, afirmou o economista. “Não é à toa que a gente virou essa sociedade com favelas, deterioração do espaço urbano e criminalidade. A gente fez de tudo para virar isso. Acho até que virou pouco. Com tudo o que a gente fez lá atrás, é surpreendente como vivemos numa sociedade calma.”

O inverso dessa lógica ocorre agora, com a queda das taxas de crescimento populacional e a convergência no padrão de família entre os mais ricos e os mais pobres. “A taxa de fecundidade dos pobres, ou seja, o número de filhos por mulher, está convergindo para a taxa de fecundidade dos ricos”, disse Pessôa.

“Isso está tirando um imenso poder de barganha dos ricos. Antes você tinha um monte de pobre pouco qualificado para trabalhar para você. Agora tem cada vez menos. O rico tem dois filhos, o pobre também, dá um pouquinho mais de educação, e aí falta empregada doméstica para trabalhar na casa do rico. O salário vai subir, e a desigualdade vai cair.”

Parte da queda na desigualdade se dá pelo efeito conjunto das decisões reprodutivas de todas as famílias, ao determinar o tamanho da geração seguinte de trabalhadores. No passado, quando havia poucos profissionais mais qualificados, o valor dessa educação extra que possuíam era recompensado, no mercado, com salários bem mais altos. O que os economistas chamam de “retornos” ao investimento em educação – o modo como as diferenças de escolaridade são traduzidas em renda – eram maiores. Esses retornos têm diminuído nos últimos anos.

“Isso tem a ver, ao mesmo tempo, com a questão demográfica e com o aumento da escolaridade média da população”, me disse Simone Wajnman, demógrafa da ufmg, em sua sala, em abril. Com menos gente com baixa escolaridade, e mantida a procura pelos trabalhos que esse grupo de pessoas desempenha, o salário de quem ganha menos tende a subir. Numa velocidade mais rápida do que a do salário de quem tem, por exemplo, o ensino médio completo.

Tal mudança, a que Samuel Pessôa se refere como histórica, não traz necessariamente crescimento econômico nem garante que o Brasil venha a se aproximar dos níveis de renda dos países ricos. “Mas certamente seremos um país mais justo, daqui pra frente”, ele disse, “talvez crescendo pouco e com nível de renda médio. É nessa direção que nós estamos indo. O que já é uma combinação infinitamente melhor do que aquela da minha infância.”

 

uando criança, José Alberto de Carvalho morou com os pais e os irmãos na casa paroquial de São Vicente de Minas. “Eu nasci lá; era para eu ter sido muito católico”, me disse o demógrafo numa tarde da Semana Santa. Padre Chico, responsável pela paróquia, era irmão de dona Mariquinha. O pai, José do Carmo, trabalhava como funcionário administrativo da prefeitura. Recebia um salário mínimo por mês.

“Do ponto de vista social, a gente era de classe média, porque a mamãe era irmã do vigário”, explicou Carvalho. “Mas em termos de renda era muito apertado, até mesmo na comida. O prato do dia a dia era arroz, feijão, abobrinha e um pedacinho de carne de porco. Era muito controlado. O presente, no Natal, era um carrinho de madeira.”

Ângela, uma das irmãs de José Alberto, descreveu o cotidiano da família numerosa como “uma loucura”. “Mas tinha ordem. Nosso pai matava um frango, no domingo, e, a cada semana, a melhor parte era de um dos filhos. O pior é que às vezes ele ainda trazia quatro, cinco pessoas da missa e mandava servir para elas também. Mas nunca passamos necessidade.”

Era o final dos anos 40, início da década de 50, no interior de Minas Gerais. O convívio nos clubes da cidade, e até mesmo na igreja, era informalmente segregado. Havia bancos separados para negros e para brancos durante a missa. Por um breve período, houve até mesmo clubes exclusivos para simpatizantes da UDN, de um lado, e do PSD, de outro. “E o pessoal que era do PTB?”, perguntei, em referência à legenda que se situava à esquerda daquelas outras duas agremiações. “Aqui em São Vicente não tinha PTB, não”, respondeu o demógrafo, com um sorriso no rosto.

Como, segundo Carvalho, um dos grupos políticos reuniu o maior número de moças, enquanto o outro ficou com os rapazes, a separação foi desfeita. Mas permaneceu no que dizia respeito à cor da pele.

A exceção era a escola, garantem os irmãos. “Ali nunca houve discriminação”, afirmou Ângela. Carvalho frequentou o colégio primário, em São Vicente, até os 11 anos. Para continuar os estudos, entrou para o seminário dos irmãos maristas, em Mendes, no sul do estado do Rio. “Naquele tempo, eu não teria outra alternativa para continuar a estudar.”

O regime de internato era rigoroso. Carvalho chamou a atenção para duas restrições, em particular. Era proibido tomar água fora das refeições, e não se podia visitar a família durante as férias. “A gente ficava por lá mesmo, capinando. Dos 11 aos 18, meus pais me visitaram apenas duas vezes. Mas eu tenho a maior gratidão aos maristas, que me deram uma formação razoável, inclusive em termos éticos. Qualquer outra coisa seria cuspir no prato em que comi.”

Certo dia, no último ano de estudos, o aluno recebeu, em Mendes, a notícia de que seu pai havia sofrido “uma ameaça de derrame”. Permitiram, excepcionalmente, que o seminarista viajasse a São Vicente. Durante a breve estada em casa, ruiu qualquer vocação sacerdotal que o rapaz pudesse ter tido. Uma menina da cidade chamou a sua atenção. “O que era bonita essa moça!”, lembrou Carvalho, mais de meio século depois, unindo as sobrancelhas no alto do rosto. “Filha de dinamarquês com uma morena de Minas. Você imagina.”

O demógrafo disse ter ficado um ano em São Vicente, sem saber direito que rumo tomar, até que seu tio, o padre Chico, tivesse uma conversa séria com ele. Fez então vestibular para economia e se mudou para Belo Horizonte. De lá, ajudava a sustentar a família. Trabalhou como contínuo, num banco. Mais tarde, receberia uma bolsa da faculdade, destinada aos melhores alunos. Em 1964, “esse ano fatídico”, concluiu o curso. Pouco depois, foi contratado como professor na universidade. Ele e Nazaré decidiram se casar.

“Mas papai me fez o favor de morrer na véspera do meu casamento civil. O dinheiro que tinha para a lua de mel eu usei para pagar o enterro. Eu e a Nazaré nos casamos na igreja no dia seguinte à missa de sétimo dia. Mamãe, que não tem nem o curso primário, ficou viúva com pouco mais de 40 anos. Mas tinha que continuar a vida, não tinha? Eu era professor da UFMG. Trabalhava lá e mandava o dinheiro para cá. Vários dos meus irmãos estavam na adolescência. Foi uma saga.”

O esforço do demógrafo servia para tentar realizar o que seu aluno, Eduardo Rios-Neto, disse ser, em regra, “quase uma impossibilidade lógica”: “É praticamente inviável para um cidadão normal ou pobre fazer um grande investimento em educação se ele tiver, digamos, sete filhos.” Dos dez irmãos de Carvalho, apenas dois não chegaram à universidade. Ninguém é rico, alguns têm uma vida confortável, outros vivem de maneira remediada.

Na Quinta-Feira Santa, metade da família se reuniu na casa de dona Mariquinha. Já de noite, lembravam, em coro, um antigo sucesso da música caipira: Colcha de Retalhos. “Aquela colcha de retalhos que tu fizeste/ juntando pedaço em pedaço foi costurada/ serviu para nosso abrigo em nossa pobreza/ aquela colcha de retalhos está bem guardada.” Como no poema de Drummond, a lua e o conhaque botaram o demógrafo comovido como o diabo. Ele também cantava.

 

um trajeto de carro entre a Fazenda Saudade e o centro urbano, Carvalho comentou as mudanças do seu tempo de infância e juventude para os dias de hoje. “A pobreza diminuiu. São Vicente mudou demais. Sempre teve uma certa indústria de laticínios, mas agora está desenvolvendo muito a área de serviços. Tem muito bar, restaurante, academia de ginástica.”

Nem todos estão satisfeitos com as mudanças, contudo. O fazendeiro Alaor Leite Guimarães, de 53 anos, mora não muito longe da casa de dona Mariquinha. Ao se encontrarem num final de tarde, em março, ele e Geraldo, um dos irmãos de Carvalho, comentaram sobre o infortúnio de um amigo em comum. O conhecido havia sido forçado a fechar a fábrica de doce de leite que mantinha. “Está difícil arrumar gente para trabalhar”, explicou Guimarães. Ele próprio encerrou a fabricação da cachaça Mula Manca, que funcionava havia dezoito anos na sua fazenda. “Acabou por falta de mão de obra. Quando você diz que é para ir para a roça, eles não querem. E olha que o salário da roça, hoje, é salário bom.”

O motivo do desinteresse, avalia Guimarães, são o excesso de regras trabalhistas e os “vales” criados pelo governo. “Tem vale pra tudo”, reclamou. Ao ouvir a queixa de um comerciante local sobre a dificuldade de “arrumar gente”, Carvalho deu outra explicação: “É claro que é difícil. Não nasce mais criança.” Descontado o exagero, proposital, os especialistas em mercado de trabalho têm usado argumentos próximos àquele destacado pelo demógrafo.

Em um artigo para os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, no início do ano passado, o economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn, constatou que “algo interessante” acontecia no país. “Odesemprego tem melhorado num contexto de piora da economia”, escreveu.

“O crescimento do PIB desacelerou para cerca de 2,7% no ano passado”, apontou, fazendo referência à evolução de tudo o que havia sido produzido no Brasil em 2011, quando ainda era recente a memória do espetacular salto de 7,5% em 2010. Uma freada desse tipo, argumentou Goldfajn, “normalmente levaria a um aumento do desemprego”. Mas não foi o que ocorreu, nem em São Vicente de Minas, nem na maior parte do país. “O que está acontecendo? O mercado de trabalho está se descolando do resto da economia? Quais as consequências?”, ele se perguntava.

Um ano depois, o crescimento da economia ficou ainda mais lento. Ao longo de 2012, o PIB subiu apenas 0,9%. Mas o desemprego, que no final de 2011 já tinha sido o menor desde 2002, repetiu o resultado em dezembro passado.

Já naquele primeiro artigo, Goldfajn afirmava que mudanças demográficas, com efeitos sobre a quantidade de gente que chega a cada ano ao mercado de trabalho, ajudavam a explicar o que ele chamou de “enigma do desemprego”. Uma ideia semelhante vinha sendo desenvolvida, havia algum tempo, por Naercio Menezes Filho, professor de economia na Universidade de São Paulo e no Insper, o Instituto de Ensino e Pesquisa.

 

m um trabalho escrito em 2006, em parceria com Luiz Guilherme Scorzafave, da USP, Menezes Filho já se mostrava capaz de prever, com bastante antecedência, o cenário de virtual pleno emprego e de aumento dos salários, em especial para os trabalhadores pouco qualificados, que se confirmou nos últimos anos. A partir de dados estatísticos para vários estados brasileiros, colhidos no período entre 1985 e 2004, Menezes Filho estimou a tendência de comportamento da procura por mão de obra – ou seja, das vagas abertas pelas empresas. Calculou também a tendência de variação do número de pessoas oferecendo trabalho – determinada principalmente pelo ritmo de aumento da população, e também pela variação dos salários.

A tendência encontrada pelos pesquisadores, e projetada para o futuro, é de que o número de vagas de emprego aumente 1% para cada ponto percentual de aumento do PIB. “Assim, se o país crescer 20% em dez anos, o número de vagas também aumentaria mais ou menos 20%”, explicou Menezes Filho. “Os dados indicam que, em longo prazo, a variação da procura por mão de obra tende a acompanhar o crescimento do PIB.”

A grande mudança encontrada pelos dois autores foi do outro lado, o da oferta de mão de obra, uma decorrência da queda abrupta no crescimento da população brasileira desde os anos 80. Há três décadas, a parcela adulta da população crescia cerca de 3% a cada ano. Hoje, o aumento anual desse contingente, disse Menezes Filho, é de 1,2%. Juntando as duas informações – sobre o comportamento da demanda e da oferta de trabalho –, o professor do Insper afirma que a economia do país precisa crescer relativamente pouco, nos próximos anos, para manter uma situação de quase pleno emprego.

“Ponha aí um aumento de 1,5% na oferta de mão de obra”, disse o economista, supondo, por segurança, que a elevação dos salários leve mais gente a procurar emprego do que indica a tendência de 1,2% de crescimento demográfico.Bastaria ao país crescer mais de 1,5% para criar, segundo os autores do estudo, uma porcentagem equivalente de empregos. O resultado seria um mercado de trabalho ainda aquecido. “Sempre vai ter uma pequena flutuação, de curto prazo, por fatores idiossincráticos. Mas o desemprego não deve aumentar. A conta é bastante simples.”

O economista Fabio Kanczuk, também professor na Universidade de São Paulo, é mais cauteloso. Ele não discorda dos efeitos positivos da dinâmica demográfica sobre a taxa de desemprego. Mas chama a atenção para o comportamento do emprego no país, que, ele diz, “não está indo bem”. O ritmo de criação de vagas na economia, em relação ao total das pessoas já contratadas, tem caído desde o início de 2010.

 “A desaceleração no ritmo de criação de vagas é muito forte nos últimos meses”, afirmou Kanczuk, no final de abril. “Não sei se vai continuar a se comportar desse jeito. Mas, se continuar caindo, não tem demografia que ajude. Uma hora aumenta o desemprego.” Ilan Gold-fajn, do Itaú, faz ressalva semelhante. “Se a economia continuar crescendo pouco, o desemprego vai acabar aumentando”, ele disse. “Mas o que é pouco? Pouco é 3%? Não. Pouco agora é 1%.” Foi nesse piso que a mudança no crescimento populacional mexeu, e de maneira favorável aos trabalhadores.

 

evolução demográfica do país, segundo Menezes Filho, também coloca em contexto menos voluntarista conquistas dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O número de crianças, definidas como pessoas de zero a 14 anos, cresceu 8% no Brasil entre 1980 e 1985, me disse o economista numa tarde chuvosa em São Paulo. Já entre 1990 e 1995, essa fatia da população aumentou apenas 1%. Nos últimos cinco anos do século passado, ela finalmente começou a diminuir.

Uma quantidade praticamente estável de crianças certamente contribuiu, ele argumentou, para a ampliação do acesso à escola fundamental durante os anos de Fernando Henrique no poder. Essa mesma geração de crianças, dez anos mais tarde, começou a entrar no mercado de trabalho, já durante o governo Lula. Foi então que a fatia de brasileiros de 15 a 24 anos de idade repetiu a queda vertiginosa constatada no número de crianças da década anterior. Se entre 1995 e 2000 a população de jovens havia crescido 11%, dez anos depois, entre 2005 e 2010, aconteceu algo antes impensável. O número de jovens encolheu, cerca de 4%. Uma consequência dessa mudança na dinâmica demográfica é que há hoje muito menos gente procurando emprego.

Além disso, quem chega agora ao mercado de trabalho já tem um nível de escolaridade mais alto. “A porcentagem de jovens com menos de cinco anos de estudo passou de 47%, em 1981, para somente 10%, em 2011”, escreveu Menezes Filho em um artigo recente para o jornal Valor Econômico. A oferta de mão de obra pouco qualificada ficou mais escassa do que nunca, aumentando os salários dos mais pobres e ajudando a reduzir a desigualdade. “É uma mudança muito forte. Muito rápida. Sem igual, eu acho, em outros países”, me disse o economista.

 Menezes Filho fez questão de reconhecer a contribuição de políticas públicas, nos últimos vinte anos, para os avanços sociais recentes no país. Mas também comentou, enquanto mudava as imagens na tela: “Tanto o Fernando Henrique quanto o Lula deram sorte.”

 

“conversão” de José Alberto de Carvalho à demografia aconteceu quase que à sua revelia, por força da época e das circunstâncias. Nos anos 60, num contexto de Guerra Fria e temor de que a experiência da Revolução Cubana se repetisse em outros países da região, os Estados Unidos voltaram suas atenções à América Latina. Atividades de apoio científico, de aprimoramento técnico da burocracia e de formação de pesquisadores para ajudar a promover o desenvolvimento local foram estimuladas. Foi nessa época que a Fundação Ford, uma entidade privada que tem como objetivos a “consolidação da democracia” e a “redução da pobreza”, começou a fazer fortes investimentos na área de ciências sociais no Brasil.

“Você veja os paradoxos da história”, me disse Carvalho, à beira do rio. “A FundaçãoFord financiou o Cebrap, formado por gente perseguida pela ditadura.” Entre os criadores, em 1969, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, desde então uma das mais importantes instituições de pesquisa em ciências sociais do país, estavam Fernando Henrique Cardoso e a demógrafa Elza Berquó. Ambos haviam sido afastados pelo regime militar de suas atividades na USP, no ano anterior.

O sociólogo Sergio Miceli, organizador do livro A Fundação Ford no Brasil, ressalta o divórcio entre os interesses do governo norte-americano, que apoiou o golpe de 64, e os jovens acadêmicos encarregados de tocar os negócios da instituição no Brasil. Foi também a fundação a responsável por financiar a ida de Carvalho, em 1970, para o doutorado em demografia, em Londres. Lá, foi orientado por William Brass, criador de métodos indiretos de estimação de variáveis populacionais, como a taxa de fecundidade, quando os dados são falhos, o que era o caso do Brasil naquela época.

Segundo a demógrafa da Unicamp Maria Coleta de Oliveira, os estudos populacionais em países pobres eram então uma área prioritária para o governo e as entidades multilaterais americanas. “No Brasil, havia investimento para pesquisa em demografia a dar com pau. Foi construída a ideia de que, se os países subdesenvolvidos não controlassem o crescimento populacional, eles não iriam romper as barreiras ao seu desenvolvimento.”

A relação entre variações populacionais e mudanças sociais se tornou um campo minado. “À direita, falava-se que a ‘explosão demográfica’ gerava pobreza, era prejudicial e que, se não houvesse planejamento e controle familiar, a fecundidade não ia cair”, me disse Carvalho. “Nós, os intelectuais de esquerda, dizíamos que não adiantava controle familiar. Que a fecundidade só cairia quando houvesse verdadeiro desenvolvimento econômico.” De um lado do espectro ideológico, a dinâmica demográfica era tratada como causa quase exclusiva das diferenças sociais. Do outro, como mera consequência, sem efeitos reais sobre as políticas públicas, os salários e o mercado de trabalho.

Por ironia, os primeiros sinais de que a fecundidade começava a cair no país apareceram em meados daquela década, no momento de auge do maniqueísmo a que se refere José Alberto de Carvalho. “Os dois lados ficaram estatelados”, contou. “A reação imediata foi questionar os dados. Como caiu, se não houve controle oficial nem ‘verdadeiro desenvolvimento’? Porque a gente não podia aceitar que havia desenvolvimento econômico em plena ditadura. Uma das primeiras hipóteses, na esquerda, foi a de que a miséria estava tão grande que teria havido uma queda generalizada da libido no Brasil.”

A hipótese de “diminuição da libido” foi apresentada, em 1980, pela professora Elza Berquó. Pioneira dos estudos demográficos no país, ela formou gerações de pesquisadores, em São Paulo. Criou uma tradição, que se mantém ainda hoje, de aproximação entre a demografia e a sociologia. Em contraste, o departamento capitaneado por José Alberto de Carvalho, em Minas, conferiu ênfase aos métodos quantitativos e sempre manteve proximidade com a economia. A professora, em seu artigo, apresentava também outras hipóteses para a queda da fecundidade, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e a “incorporação”, pela classe trabalhadora, do cálculo econômico.

Em um texto recente, Carvalho reconhece que Elza Berquó, pouco depois, abandonou a sua “hipótese heroica”. Numa conversa no Cebrap, em abril, a demógrafa afirmou que tal ideia, para ela, nunca teve muita relevância. “É preciso lembrar que a queda na taxa de fecundidade foi uma surpresa muito grande. Aí surgiram hipóteses de vários tipos. Essa foi uma delas. Logo em seguida, saíram outros trabalhos, a gente fez outras análises e verificou outras explicações. Houve várias explicações.”

O professor mineiro argumenta que, no fundo, esquerda e direita tratavam os pobres como irracionais, incapazes de responder aos estímulos que a urbanização criava para que tivessem um número menor de filhos. “Os pobres surpreenderam os intelectuais brasileiros”, ele comentou, rindo.

A surpresa, afirmou sua colega paulista, se deveu ao fato de os pesquisadores trabalharem, então, “no escuro”. “É preciso não esquecer que o Censo demográfico de 1960 só foi publicado, em parte, no final da década seguinte”, disse Elza. “O regime militar nunca explicou o que houve com a perda de parte dos dados. Foi só com os resultados do Censo de 70 que nós pudemos ver o que estava acontecendo. Nós ficamos num vazio de informações entre 60 e meados dos anos 70.”

A demógrafa Maria Coleta de Oliveira, embora carioca, pertence ao grupo “paulista” dessa discussão. Ela diz que as dicotomias de quatro décadas atrás foram superadas. “Claro, a dinâmica demográfica impõe condições, não há dúvida. O que a sociedade e a economia vão fazer com essas condições é outra coisa.”

A professora Elza disse estar de acordo. “O fato de ter diminuído o número de jovens, em termos absolutos, ajudou a termos menos desemprego. Mas nós precisamos ver que empregos são esses. Mesmo com essa redução, o Brasil não tem mão de obra qualificada para várias especialidades. Não resolve o problema. Investiu-se muito pouco, a meu ver, em educação.”

 

efeito equalizador da queda na taxa de fecundidade, dizem os pesquisadores, é duradouro. Há um outro impacto, contudo, a princípio também benéfico, que é transitório. É o chamado “bônus demográfico”, que compreende o período de tempo em que é máxima a participação das pessoas em idade para trabalhar no total da população. Por algumas décadas, a porcentagem de crianças cai numa velocidade maior do que o aumento da parcela de idosos. Em teoria, a geração de renda pelos que trabalham poderia então aumentar numa velocidade maior do que a dos gastos com os grupos que não trabalham – com efeitos positivos sobre o crescimento e a capacidade de poupança.

Ocorre que, com o envelhecimento da população, a porcentagem de idosos continuará a aumentar. Em algum momento, a participação dos adultos no total da população deve encolher. “O bônus demográfico brasileiro iniciou-se em meados dos anos 70 e terminará em dez anos, aproximadamente”, disse Samuel Pessôa. “Já gastamos mais de 80% dele. Agora, que entramos na fase em que a taxa de crescimento da população como um todo e também a da população em idade para trabalhar são baixas, somente conseguiremos crescer mais rapidamente se elevarmos a produtividade dos trabalhadores. A vida ficou mais difícil para o crescimento econômico, apesar de ter ficado mais fácil para a redução da desigualdade de renda.”

Para aumentar a produtividade dos trabalhadores, defende Pessôa, é preciso ter ganhos de qualidade, e não apenas de quantidade, no sistema público de educação. “Ninguém sabe como fazer isso no Brasil, hoje”, ele disse. O discurso é semelhante ao do professor mineiro. “Ou você investe nessa criançada, pouca para sustentar uma proporção crescente de idosos, ou teremos problemas”, me disse Carvalho num final de tarde, quando começava a chover forte em São Vicente de Minas. “O bônus é passageiro, e não o estamos aproveitando. Daqui a algum tempo, com o aumento do número de idosos, a Previdência Social será insustentável. É uma questão aritmética.”

O tema levou o demógrafo a falar de uma imposição que sofreu, há pouco mais de dois anos, e que ainda lhe causa irritação e tristeza. Por ser servidor público, ao completar 70 anos, no final de 2010, José Alberto de Carvalho foi obrigado a se aposentar do cargo de professor titular da UFMG.

Ele veio a ser contratado, em seguida, pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas ligada à universidade, uma entidade de direito privado. Para um cargo alto, de diretor-executivo, o que lhe dá trabalho e lhe confere uma sala confortável no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas. O que, afinal, em nada diminuiu a ênfase de sua queixa. “É um absurdo. Não faz sentido. Você abre mão de quem tem experiência e aumenta os gastos ao contratar um novo funcionário.”

“Não é que ele tenha ficado insatisfeito com essa situação”, me disse Simone Wajnman, que acompanhou de perto a frustração do seu antigo professor. “Ele ficou doente! Era uma ideia inaceitável para ele, e é fácil notar o efeito nefasto que a aposentadoria produziu em sua vida. Até hoje, ele se apresenta como um professor compulsoriamente aposentado, e não como um professor aposentado. E não perde uma única oportunidade de fazer uma longa preleção sobre o absurdo dessa legislação, enfatizando, é claro, a questão demográfica envolvida.”

 

ó se ouve de Carvalho lamento semelhante quando o tema é a política. A chuva levantava um cheiro bom, de terra, na Fazenda Saudade, quando ele elogiou o processo de transição entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, no final de 2002. “Foi tão civilizada”, suspirou. “Mas, agora, está tudo piorando, com essa polarização.”

Da primeira vez que nos falamos, por telefone, o assunto já havia surgido. Fazia pouco tempo, então, que a disputa pela sucessão presidencial havia sido precipitadamente deflagrada. Em fevereiro, no ato em que se comemoravam os dez anos do PT no poder, Lula lançou Dilma como candidata à reeleição. “Nós não herdamos nada; nós construímos”, disse a presidente, em seu discurso. Numa espécie de resposta antecipada, o tucano Aécio Neves havia subido à tribuna do Senado, naquele mesmo dia. Segundo o pré-candidato à Presidência pelo PSDB, desde que chegou ao governo o PT está apenas “exaurindo a herança bendita” que o governo Fernando Henrique lhe legou.

A melhoria dos indicadores sociais no país encontra-se no centro do embate entre PT e PSDB. O professor emérito da UFMG expressou certo fastio em relação à disputa. “Os governos, em vez de reconhecerem a contribuição da demografia e irem além, ficam se autoelogiando, um querendo se comparar com o outro”, reclamou.

“Claro, temos que reconhecer que houve algum esforço. Mas eu diria que a contribuição da transição demográfica foi muito mais importante do que a atuação dos governos federais. O problema é que, se você reconhece a grande contribuição da demografia, surge a pergunta, incômoda: por que não se faz mais?” 

A revolução será pós-televisionada

12 de julho de 2013
11/07/2013 3:16 pm
A revolução será pós-televisionada

Muita gente continua perplexa com o futuro que é hoje, uma realidade cíbrida, termo cunhado por pesquisadores de arte e da Web. Uma realidade em que estamos online e offline o tempo todo, em celulares e redes

Por Elizabeth Lorenzott, no Observatório da Imprensa

 

“Você me acha um homem lido, instruído?”

“Com certeza”, respondeu Zi-gong. “Não é?”

“De jeito nenhum”, replicou Confúcio. “Simplesmente consegui achar o fio da meada.” (Sima Qian, Confúcio. Do prólogo do livro de Manuel Castells,A Sociedade em Rede, Volume I, Editora Paz e Terra , 1999)

***

Página da Mídia Ninja no Facebook (2/7/2013):

“A revolução será postelevisionada. Já são 72 horas de transmissão ininterrupta da Ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte.”

 

Em 1970, Gil Scott-Heron lançou esta música, que marcou uma geração: “A revolução não será televisionada”.

Mais de 40 anos depois, entretanto, as novas mídias corrigem o artista: a revolução, seja ela qual for, será transmitida e retransmitida pela internet, esta outra grande revolução do território do nosso pensamento. Mas não o corrigem em tudo: “The revolution will be live/ A revolução será ao vivo”.

Enquanto isso, muita e muita gente continua perplexa com o futuro que é hoje, uma realidade cíbrida, termo cunhado por pesquisadores de arte e da Web, estudiosos da cibercultura (ver abaixo). Uma realidade em que estamos online e offline o tempo todo, em celulares e redes.

Lendo análises de alguns de nossos intelectuais sobre as jornadas de junho de 2013, chego à conclusão de que eles parecem desconhecer o novo mundo em que vivem no século 21. Que suas categorias de pensamento precisam ser urgentemente revistas, pois existe uma nova forma de vida em sociedade, desterritorializada e desespacializada. “A linearidade cognitiva, discursiva e ideológica do século 20 está posta em xeque”, como leio em João Telésforo, um jovem mestre em Direito, de 25 anos, na rede.

Na última edição da revista Teoria & Debate, a professora de filosofia Marilena Chauí, 71 anos, escreve sobre as manifestações de junho. Aqui, o objetivo não é discutir sua análise política da conjuntura, mas chamou minha atenção, e a de muitos usuários de redes sociais, esta afirmação:

“A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possuem algumas características que as aproximam dos procedimentos da mídia”.

Marilena Chauí enuncia os seguintes problemas [grifos meus]:

1. – “é indiferenciado: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público”;

2. – “tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa.(Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver, tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

3. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação.”

“Sério que ela escreveu isso?”, perguntou um internauta no Facebook, na página de um dos coordenadores da Casa Fora do Eixo, que ancora a mídia digital independente POSTV (ver “POSTV, de pós-jornalistas para pós-telespectadores“).

O convite “poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público”. Desta forma, a professora Marilena Chauí desconsidera não apenas os dez anos de existência e ativismo do Movimento Passe Livre. Ela desconsidera a força e o poder de multiplicação das mensagens nas redes sociais, especialmente neste caso, quando elas embutiram consonância com (vários) problemas da população e impactaram suas mentes.

As redes sociais foram criadas a partir dos anos 1980 pelos libertários do movimento da contracultura. (John Perry Barlow, letrista do grupo Greatful Dead, dos anos 1960, foi um dos pioneiros e a comunidade mais eficiente e duradoura, a The Well, de 1985. Sem essas comunidades, Facebook, Twitter e todas as outras talvez nunca tivessem existido. Um sonho libertário que hoje, apesar de todas as tentativas de controle, continua dando frutos.)

Tem razão a professora, os usuários “não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam”. Mas nesta chamada “dimensão mágica”, não basta “apertar um botão para tudo aparecer”. Ligando-se o computador e acessando pela primeira vez uma rede, construindo seu perfil, o usuário poderá ficar para sempre na frente da tela em branco que lhe pede informações e adição de amigos. Tudo começará a acontecer quando ele encontrar amigos, interagir com eles e com os amigos de amigos. Compartilhar aquém e além-mar e ar seus gostos e desgostos, seus trabalhos, suas criações, trocar ideias, conhecer, desconhecer, deletar, adicionar, curtir, combinar, marcar encontros, falar bem ou mal de alguém e/ou das instituições, criar álbuns de fotos e de vídeos. Descobrir que pode ser censurado pelas regras difusas do dono do Facebook, a rede preferida pelos brasileiros, se postar fotos de nu frontal, se for denunciado por algum usuário ou pela rede de “revisores” contratados por Mark Zuckerberg – conforme a empresa mesmo tentou explicar recentemente (https://www.facebook.com/FacebookBrasil, ver post de 27 de junho) –, se “incitar a violência” etc., e mesmo se fizer muitos amigos “não conhecidos pessoalmente”.

Assim, não basta apenas apertar um botão, é preciso descobrir o fio da meada, como diz Confúcio.

Memória preciosa

No domingo (7/7), o portal iG publicou entrevista com o sociólogo Francisco Oliveira, 79 anos. Segundo Oliveira, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), um dos ícones do pensamento de esquerda no Brasil, bastante crítico ao PT, as manifestações não foram nada demais, talvez apenas um espasmo diluído na falta de demandas claras. O professor admitiu desconhecer os motivos que levaram milhões de brasileiros às ruas e afirmou, corretamente, entretanto, que não é o único. “Ninguém sabe. Estão todos chutando hipóteses”.

Entretanto, o professor não se referiu, nem lhe foi perguntado, à sociedade em rede e ao papel das redes sociais nas jornadas de junho. Na verdade, a maioria das entrevistas feitas pela mídia tradicional impressa e televisiva, ou não menciona, ou passa rapidamente pelo assunto.

Já seu colega, o professor aposentado da USP e doutor pela Universidade de Paris X, Nanterre, Paulo Arantes, 70 anos, filósofo e importante pensador marxista brasileiro – que deu uma aula pública na frente da Prefeitura de São Paulo, convidado pelo Movimento Passe Livre –, entrevistado pelo Estado de S. Paulo (26/6/2013), afirmou que, quanto ao “caráter difuso” das demandas, trata-se de um bordão pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma espantosa precisão – nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em 1789 queria tudo por não ser nada – elas sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor.

Ele também não falou, nem foi perguntado, sobre o papel das redes sociais. Porém ficarei com essa bela frase: [as demandas] “sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor”.

Registro que não se trata de estigmatizar pensadores pela idade, mas de constatar o quanto representantes dessa brilhante geração de acadêmicos, que tanto contribuiu para jogar luz sobre complexas questões do século 20, está distanciada dos novos desafios propostos pela sociedade em rede. Aqueles que não vivem a rede não têm condições de entendê-la por ouvir falar. E, se apresentam dificuldade de manejar as novas ferramentas da comunicação, têm obrigação de fazê-lo enquanto quiserem continuar contribuindo com suas análises.

Por sua vez, o antropólogo Hermano Vianna, 62 anos, em sua coluna em O Globo (28/6/2013), apresenta-se como ex-usuário do Orkut e atual do Facebook, que considera um “território antipático”, com razão, ao acentuar o controle da empresa para a qual os usuários trabalham de graça.

“Por isso, fico assustado quando constato que as manifestações que tomaram conta das ruas brasileiras lutando por uma vida pública (tudo começou com a batalha pela melhoria do transporte público) mais democrática sejam ‘agendadas’ dentro de condomínio controlado por uma das corporações de mídia mais poderosas do planeta (e que bloqueia nossos perfis se publicamos fotos de mulher com os peitos de fora) [grifo meu].”

E continua:

“Imaginem se o Facebook decidir que quer ‘descontinuar’ sua rede social. Onde vai parar a memória deste momento central da história brasileira? Mesmo que o Facebook não acabe nunca: daqui a uma década, tente encontrar um evento da semana passada. (…) Que falta isso fará? Seremos muito felizes desmemoriados ou talvez vamos precisar da ajuda do FBI, que deve manter todos nossos ‘eventos’ arquivados em alguma pasta secreta, para lembrar dos nossos anos ciber-rebeldes.”

Vianna, que vive a rede, e com propriedade aponta seu controle, não deve temer quanto às convocações das manifestações dentro desse “condomínio controlado”. Pois ele não consegue ser suficientemente controlado para impedir, qualificar ou desqualificar chamamentos em todo o mundo, de São Paulo a Istambul, de Poços de Caldas a Barcelona etc. Mas seus usuários podem sim, como o fizeram em junho, dia após dia, denunciar uma convocação de “greve geral” por um perfil provocador e que já contava com cerca de 500 mil adesões – explicando, discutindo e esvaziando seu objeto.

Vianna também se esquece de que nesta mesma rede, pessoas e entidades as mais variadas estão documentando de forma impressionante os acontecimentos por meio de coberturas intensas de streaming, fotos, textos etc. Portanto, o resgate já está feito e, de qualquer forma, se o FBI e a CIA podem vasculhar, xeretar, arquivar, fazer de tudo com a vida virtual de bilhões pelo mundo, por que equipes de pesquisadores não podem também ser os guardiães dessa memória preciosíssima das jornadas de junho nas redes sociais, por exemplo? (Ver post “Matilha Cultural e parceiros organizam mostra ‘Calar a boca nunca mais!’“)

“Um limiar que ainda não se ousou transpor”

O cibridismo, estado de se estar online e offline simultaneamente, tem uma de suas conceituadoras na estadunidense Amber Case, que não é acadêmica, mas se apresenta como uma antropóloga ciborgue. Ela escreveu um Dicionário de antropologia ciborgue.

Amber explica que…

“…nossa maneira de socialização está passando por mudanças. Com certeza um nativo digital (pessoa que nasceu e cresceu com as tecnologias digitais presentes em sua vida) já possui uma plasticidade cerebral adaptada à interação com gadgets e enxerga nas redes sociais não uma novidade, mas uma tecnologia de rotina.”

Em São Paulo, a artista digital, pesquisadora e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman (ver aqui) lembra que…

“…a TV nos possibilitou consumir ao mesmo tempo imagens – porque sons o rádio já fazia – independentemente do espaço de localização. A internet esmigalhou com essas questões de ponta a ponta. Você pode produzir para além da confluência do tempo e do espaço. Trabalhar coletivamente em espaços diferentes e em temporalidades assincrônicas.”

O sociólogo espanhol Manuel Castells, que tem se dedicado a entender os novos movimentos sociais planetários, em entrevista a O Globo (29/6/2013) afirmou que “as mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva”. E que, ao contrário do que estudávamos em Marshall McLuhan, na década de 1970, “o meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas”.

Segundo Castells, o que existe em comum entre os movimentos sociais contemporâneos…

“…são as redes na internet, presença no espaço urbano, ausência de liderança, autonomia, ausência de temor, além de abrangência de toda a sociedade e não apenas um grupo. Em grande parte os movimentos são liderados pela juventude e estão à procura de uma nova democracia.”

Sobre o legado do movimento Occupy, nos EUA, Castells afirma que “deixou novos valores, uma nova consciência para a maioria dos americanos”.

E os indignados espanhóis? Conseguiram “muitas vitórias, especialmente em matéria de direito de hipoteca e despejos de habitação e uma nova compreensão completa da democracia na maioria da população”.

O catedrático de sociologia e planejamento urbano e regional da Universidade da Califórnia respondeu desta forma à pergunta “países que controlam a internet, como a China, estão livres dessas manifestações?”

Castells– “Não, isso é um erro da imprensa ocidental. Há muitas manifestações na China, também organizadas na internet, como a da cidade de Guangzhou (no sul do país), em janeiro passado, pela liberdade de imprensa (o editorial de um jornal foi censurado e isso motivou as primeiras manifestações pela liberdade de expressão na China em décadas. Pelo menos 12 pessoas foram detidas, acusadas de subversão)”.

O italiano Paolo Gerbaudo, sociólogo e jornalista, é doutor em Mídia e Comunicação pelo Goldsmith College, professor de Cultura Digital e Sociedade do King’s College, em Londres. Em entrevista à Folha de S.Paulo (8/7/2013) afirmou:

“A ascensão das redes sociais permite que a sociedade se organize de forma mais difusa, especialmente as classes médias emergentes e a juventude das cidades. Isso desorientou os políticos e os velhos partidos, que estavam acostumados a buscar consensos através dos meios de comunicação de massa.

“Os partidos têm pouco a fazer diante das novas formas de comunicação mediadas pelas redes sociais. A não ser que mudem completamente as suas práticas, baseadas no velho sistema de quadros e caciques locais, e se abram para novas formas de participação popular.”

Segundo Gerbaudo…

“…devido à ausência de uma estrutura formal, esses novos movimentos populares tendem a sumir com a mesma velocidade com que aparecem. É impossível manter uma mobilização de massa a longo prazo, como se viu nos indignados da Espanha ou no Occupy Wall Street.

“Mas, assim como aconteceu lá, é de se apostar que o outono brasileiro vai ressurgir em novas ondas e novas formas. Estamos vivendo tempos revolucionários, em que as pessoas voltaram a sentir que podem mudar o mundo (…)”.

É preciso sair do século 20

No dia 1º de julho, o programa de TV Capital Natural, idealizado e produzido pela AIUÊ, uma produtora de documentários estratégicos criativos, ancorados pelo jornalista Fernando Gabeira (ver aqui), entrevistou Augusto de Franco, físico e criador da Escola-de-Redes (uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving)e o jornalista Bruno Torturra, da POSTV.

De acordo com Franco, em mais de mil cidades, as pessoas “enxameando” sem convocação centralizada foi algo nunca visto na história do Brasil. “É preciso sair do século 20 para entender o que estamos falando”, bradou. “A rede é um ambiente propício para a multiliderança. Não precisa líder profissional, porque caiu o princípio que você não pode organizar a ação coletiva sem líderes. O Movimento Passe Livre não liderou, foi o estopim, como na Turquia foi a praça”, afirmou.

Segundo Franco, “os governos de sociedade em rede terão de ser cada vez mais governos em rede, não ficar nos gabinetes, pois se tornarão obsoletos. E a vontade coletiva não vai se dar mais a partir da soma de pequenas opiniões de indivíduos. Entra em cena uma coisa que não é a soma. São tantas interações, que compõem outra realidade”.

Para o professor Evandro Vieira Ouriques,pós-doutor em Cultura de Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “as redes sociais são uma forma ótima de mostrar ao governo e às pessoas no poder o que você pensa. Mas elas são apenas uma ferramenta, não a transformação em si. A transformação real ocorre no território mental. Na reedição gradativa que você faz, sozinho ou com ajuda profissional – e sempre em rede – dos estados mentais (pensamentos, afetos e percepções) que utiliza como referência para sua ação no mundo. Trata-se portanto de eliminar do fluxo mental – sendo a mente entendida como o organismo todo –, os estados mentais que fazem parte do ‘regime de servidão’ e que você, na maior parte das vezes, de maneira inconsciente, repete”.

Os jornais e as redes sociais: autoridade sem centralidade

No dia 5 de julho, a Folha de S. Paulo começou a publicar textos com o objetivo de provar que a mídia tradicional é autoridade nas redes sociais (ver aqui). Em resposta, o professor Fábio Malini, do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) daUniversidade Federal do Espírito Santo – criado em 2007 para realização experimental de produtos digitais e a promoção de pesquisas e atividades de extensão sobre o impacto da cultura digital nos processos e práticas de comunicação contemporânea – postou em sua página no Facebook:

“Li agora a reportagem da Folha sobre o jornalismo. Na verdade, recebi um telefonema da Folha há alguns dias. O tema era o papel do jornalismo no protestoBR. Eu disse o que eu sempre digo, há anos: o jornalismo (as empresas) possui muitos RTs de seus posts por um motivo óbvio: possuem acesso rápido ao poder. Exemplo: o prefeito não quer abaixar a tarifa. E, de repente, por pressão popular, abaixa a tarifa. O jornal tem lá a fonte que bebe cafezinho com o prefeito e publica a notícia exclusiva. O que acontece depois nas redes sociais? Um monte de gente retuita a notícia publicada no jornal. Essa métrica leva a uma autoridade (afinal, gente de diferentes grupos retuitará a notícia). Isso também acontece com os perfis oficiais das mobilizações (eles viram autoridades por ter a exclusividade de notícias factuais). Mas, completei: o problema é que esse jornalismo (das empresas) possui autoridade, mas não centralidade. Aí isso deu um ‘nó’ no editor. Eu disse: a centralidade está com os ativistas. Porque a centralidade mensura a capacidade de um ‘nó’ (perfil) ser capaz de atrair conexões, distribuir conexões, ser ponte para outras pessoas, articular mundos. Coordenar uma ação. Não adianta você ser autoridade e estar isolado do mundo. O núcleo da interação (a densidade das relações) fica com os ativistas. A periferia das conversas com o jornalismos e seus fãs que tudo republicam.

“O que vocês acham que foi publicado? O jornalismo é uma autoridade nas redes sociais. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk”

Em uma coluna no domingo (7/7), o editor-executivo da Folha Sérgio Dávila (ver aqui), a partir de levantamento feito pelo jornal, afirma que “80% dos links compartilhados no Twitter com ‘hashtags’ ligadas aos protestos durante o auge do movimento tinham origem na mídia dita tradicional – quer dizer, era conteúdo produzido pela imprensa profissional, levando em conta os preceitos do bom jornalismo. Ainda de acordo com a pesquisa, páginas ligadas à imprensa no Facebook tiveram o compartilhamento de seu conteúdo pelo menos triplicado”.

No texto “Imprensa nas redes sociais: autoridade sem centralidade”, o professor Fabio Malini explica com detalhes o que resumiu no Facebook. Ele acentua que “quando computado o volume de RTS que os jornais recebem em relação ao número total de tweets, o resultado é mínimo”. Para o especialista…

“…não adianta a @folha ser autoridade e estar isolada do mundo social que interage intensamente. O núcleo da interação (a densidade das relações) fica com os ativistas, porque eles conversam, compartilham, republicam uns aos outros. Eles estão em contato e em contágio permanente, enquanto perfis como o da @folha ficam só difundido informações para seus milhares de seguidores”.

Então, conclui:

“O comportamento de alguns perfis de imprensa é o mesmo de muitos políticos. Publica a notícia, mas não escuta, não interage, não conversa com outros perfis nas redes, porque, afinal, querem ver tudo de longe. A regra não vale para todos os veículos de imprensa, alguns se aventuram nas ruas virtuais (e ganham centralidade). Mas são poucos”.

Mas a Folha de S.Paulo não publicou a explicação completa do professor na entrevista. Por isso, seu editor-executivo pode continuar confortavelmente, em berço esplêndido à la Luiz 14, acreditando na autoridade da imprensa tradicional.

Seria de interesse desta mídia avaliar melhor a conjuntura, em vez de se proteger com meias verdades. Este pensamento mágico não impedirá as mudanças, que já estão ocorrendo.

Há paradigmas demais sendo quebrados, como analisa a jornalista Ana Lagoa, especialista em gestão da inteligência empresarial:

“As novas ferramentas digitais, incluindo-se aí a Web, são estruturantes do pensamento e da ação, e estão forjando, dando forma e apontando roteiros da nova sociedade informacional. Nessa perspectiva, não é apenas uma mudança de foco ou de métodos. O paradigma mais importante que está sendo quebrado – não agora, com as manifestações de rua e seus efeitos colaterais, mas já há algum tempo, de forma quase invisível – é o lugar do poder. O que se observa é o deslocamento dos sujeitos, de seus lugares de conforto, para os não lugares, muitas vezes extremamente desconfortáveis, sobretudo para aqueles habituados a centralizar os poderes, nas mais variadas instâncias da vida social e não percebem que as ‘gavetinhas’ e as ‘hierarquias’ estão sendo demolidas e caminhamos para uma sociedade fractal, quântica, em que palavras como poder, controle, responsabilidade, cidadania e democracia assumem outras conotações ainda imprevisíveis. Isso tudo não é exatamente uma novidade. Está lá no Piaget, no Maturana, no Lévy, no Castells, mas só agora parece sair do estrito ciclo dos estudiosos.”

E por fim, notícia de última hora. Entre as muitas medidas tomadas por autoridades após as jornadas de junho, há mais uma novidade. O governo federal anunciou diálogo com jovens por meio de redes sociais. A Secretaria da Juventude informou que lançará um “observatório participativo”.

***

Elizabeth Lorenzotti é escritora e jornalista, autora de Suplemento Literário – Que Falta ele Faz (ensaio),Tinhorão, o Legendário (biografia) e As Dez Mil Coisas (poesia)

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O Facebook é um condomínio fechado

29 de junho de 2013

Por Hermano Vianna
NO GLOBO

Título original: Território antipático

O Facebook é um condomínio fechado que funciona com princípios contrários àqueles que criaram a riqueza da vida pública na internet

Sou muito antigo. Quando usei a internet pela primeira vez, Tim Berners-Lee ainda não havia inventado o www. Portanto, Mark Zuckerberg nem sonhava com o Facebook. Durante este tempo de vida on-line, mantive afiada a curiosidade com relação às novas ferramentas que continuam a mudar nossas formas de comunicação com o mundo. Posso declarar: crianças, acompanhei em tempo real — parecia final de Copa do Mundo — a campanha que fez o Brasil virar campeão de perfis no Orkut. Depois, fiquei alegre ao perceber cada vez mais gente de favelas na rede social do Google, algo que revelava uma “inclusão digital” conquistada na marra. Então, não gostei nada quando os ricos abandonaram o Orkut para se afastar dos pobres, tentando manter a qualquer custo, na realidade virtual, a desigualdade real/brutal da sociedade brasileira.

Continuo achando o Facebook um território antipático. Não apenas pela maneira preconceituosa com que foi adotado no Brasil. Mais importante é outro argumento político já repetido inúmeras vezes nesta coluna: o Facebook (recuso-me a chamá-lo de “face”, como se fosse amigo íntimo) é um condomínio fechado que funciona com princípios contrários àqueles que criaram a riqueza da vida pública da cidade chamada internet. Muita gente nem se aventura mais para fora dos muros dessa rede social privada: pensa que aquilo ali é toda a grande Rede, esquecendo que vive em ambiente controlado por uma única empresa, trabalhando de graça para seu sucesso comercial. Por isso, fico assustado quando constato que as manifestações que tomaram conta das ruas brasileiras lutando por uma vida pública (tudo começou com a batalha pela melhoria do transporte público) mais democrática sejam “agendadas” dentro de condomínio controlado por uma das corporações de mídia mais poderosas do planeta (e que bloqueia nossos perfis se publicamos fotos de mulher com os peitos de fora).

As manifestações sempre começavam em eventos do Facebook. Acesso às informações sobre esses eventos só com perfil no Facebook, aceitando os termos de uso da empresa dona da rede social. Alguém já leu com cuidado esses Termos de Uso? Alguém chama aquilo de legislação democrática? Novamente: sou antigo, de um tempo em que muita gente via na internet uma trincheira na luta pela liberdade e acreditava em algo que pessoas mais novas não devem ter ouvido falar: software livre, código aberto. Onde isso tudo foi parar? E por que a defesa do Marco Civil da Internet, escrito em processo aberto, não se tornou também uma grande bandeira nas nossas manifestações de rua?

Estranha coincidência: enquanto os protestos brasileiros aconteciam, o FBI acusou Edward Snowden de espionagem, por ter vazado dados que provam que as grandes corporações da internet colaboram com o governo americano abrindo seus bancos de nossos dados que imaginamos privados. Era sobre isso que eu estava escrevendo nesta coluna antes das manifestações. Não vou assustar ninguém com essa politicagem global. Bastam questões mais práticas. Por exemplo: este é o último fim de semana do Google Reader. Esse serviço vai terminar porque o Google assim decidiu, sem consulta aos usuários. É uma empresa, pode fazer o que quiser com seus produtos. Imaginem se o Facebook decidir que quer “descontinuar” sua rede social. Onde vai parar a memória deste momento central da História brasileira?

Mesmo que o Facebook não acabe nunca: daqui a uma década, tente encontrar um evento da semana passada. Estará perdido em alguma timeline talvez desativada. Como a rede social não tem uma boa ferramenta de busca e criação de links, como os robôs de buscas externas não podem ultrapassar os limites de seus muros, é quase impossível encontrar alguma coisa por ali a não ser o passado mais imediato. Mas como dizem muitos, somos país sem memória. Que falta isso fará? Seremos muito felizes desmemoriados ou talvez vamos precisar da ajuda do FBI, que deve manter todos nossos “eventos” arquivados em alguma pasta secreta, para lembrar dos nossos anos ciber-rebeldes.

Miriam Leitão, no domingo passado, fez perguntas que devem estar tirando o sono de muitas outras pessoas: “E as pesquisas de opinião? O que é mesmo que perguntaram para captar tanta popularidade do governo? Como isso se encaixa com o que vimos agora?” Lendo as pesquisas publicadas pelo Ibope/“Época” esta semana (entre os 75% que apoiam os protestos 69% se dizem satisfeitos com suas vidas atuais) mais um mito caiu por terra: quem disse que para protestar precisamos estar insatisfeitos? Hoje todo mundo quer planos, inclusive políticos, cada vez mais ilimitados. Como sempre digo: abundância exige mais abundância.

Balanço das manifestações Uma análise da conjuntura política brasileira

27 de junho de 2013
 
24 de junho de 2013 11:57 PM

 

Balanço das manifestações

 

Uma análise da conjuntura política brasileira

 

As manifestações que se espalharam por centenas de cidades no país tiveram o seu ponto de partida em S. Paulo

 

Rui Costa Pimenta

 

As manifestações que se espalharam por centenas de cidades no país tiveram o seu ponto de partida em S. Paulo, com as passeatas contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos implementado pelo prefeito Fernando Haddad, do PT, e o governador Geraldo Alckmin, do PSDB.

 

A luta pelo passe livre iniciou-se anos atrás durante do governo Kassab e vem sofrendo desde aquele momento a repressão policial. Ela teve momentos de mobilizações expressivas e outros momentos de pequenas manifestações, mas se manteve como o movimento de uma frente única de organizações políticas e reivindicativas de caráter permanente.

 

Este movimento está intimamente ligado ao movimento de luta nas universidades estaduais, em particular da USP, que ocupou a reitoria daquela universidade em duas importantes oportunidades, em 2007 e 2011.

 

Esse é, essencialmente, um movimento da juventude e um movimento dirigido contra a ditadura que a direita, ou seja, o PSDB e seus aliados impuseram no mais importante estado da federação nacional.

 

A eleição de Fernando Haddad do PT ou, mais precisamente, a derrota do PSDB  colocou em evidência a crise dessa ditadura. O PT assume o governo não como uma alternativa popular ao PSDB, mas como uma versão mais débil de governo burguês representante do regime politico antidemocrático, anti-operário e pró-imperialista, indicando o completo esgotamento dos métodos anteriores de contenção e a completa perda de autoridade da direita para governar.

 

O movimento pela redução da tarifa

 

As manifestações de 2013 foram mais um sintoma do agravamento da crise. Começaram com muito maior participação da juventude. Seu espírito de luta também estava incrementado. Nos anos anteriores, alas mais moderadas do movimento, como a própria direção do MPL, buscavam evitar qualquer manifestação mais radical e, particularmente, qualquer resistência à violência policial. Este ano, a esquerda do movimento, apoiada nos setores jovens da periferia que começaram a participar romperam estes diques de contenção e enfrentaram a repressão policial, apesar da óbvia desvantagem material. Os eventos de violência do início da manifestação, provocados diretamente pela repressão policial, foram apresentados pela imprensa capitalista, que logo saiu em defesa do governo Alckmin, como “vandalismo”  e “baderna”.

 

Esta é a mesma política empregada na USP, onde a luta política e social da juventude foi apresentada como um ato de criminalidade sem qualquer conteúdo político.

 

Essa repressão, no entanto, foi justamente um dos estímulos para o crescimento das manifestações que aumentaram a cada novo episódio da ação policial.

 

A manifestação anterior à quinta-feira, duramente reprimida, já indicava claramente a incapacidade da força repressiva do governo do PSDB de efetivamente conter o crescimento da mobilização política.

 

Estava colocado o impasse para o governo estadual. Ceder às manifestações ou reprimir. Se cedesse haveria sido derrotado pela mobilização, a qual não conseguia conter, desmoralizando completamente a campanha caluniosa do movimento criminoso, do vandalismo e da baderna. Se reprimisse, abrir-se-ia a seguinte alternativa: ou não conseguir impedir a manifestação, uma desmoralização ainda maior do que ceder sem enfrentamento, ou usar de muita violência para reprimir o movimento, o que levaria à desmoralização da repressão diante da população que estava sendo desinformada com o relato  de que se tratava de uma minoria de marginais.

 

Alckmin, de maneira absolutamente equivocada, optou pela repressão e colocou em jogo um amplo contingente de repressão com milhares de soldados da PM, a Rota, a Tropa de Choque, a Cavalaria e vários destacamentos especiais. A violência da repressão – inevitável e não acidental – que atingiu simples observadores e passantes, jornalistas, além dos manifestantes, fez com que a crise política se abrisse completamente.

 

A importância decisiva do dia 13 de junho

 

A violenta repressão do dia 13 de junho foi o momento decisivo de toda a crise. Justamente por isso, toda a imprensa capitalista silenciou sobre essa questão nos dias posteriores. A repressão não pôde ser escamoteada pela imprensa com os argumentos conservadores tradicionais de que o governo estava cumprindo a lei, que havia agido contra baderneiros e outras fantasias da propaganda reacionária.

 

O resultado da repressão foi a liquidação de toda a aparência de autoridade do governo do Estado e da sua máquina repressiva como fator político local e nacional. Todos os planos da direita estão baseados no controle do aparelho administrativo do Estado de S. Paulo, a tal ponto que dias antes da manifestação, o jornal Folha de S. Paulo havia estampado na capa a manchete absolutamente inverossímil de que Alckmin era eleitoralmente imbatível em S. Paulo e que seria capaz de derrotar até mesmo o próprio Lula.

 

O colapso, contudo, não foi apenas eleitoral. O estado de S. Paulo, o mais industrializado do país, com uma imensa classe operária e uma classe média muito politizada, é um barril de pólvora e uma ameaça constante ao regime político. Foi daqui que não apenas partiu, mas onde se desenvolveu amplamente a luta que levaria ao fim do regime militar. Aqui está também o maior quociente de organização da esquerda nacional e o mais radical. A perda de controle em um Estado como esse e, em particular, em uma metrópole de mais de 20 milhões de habitantes como é a Grande S. Paulo, coloca o regime político de conjunto em uma crise terminal.

 

O silêncio sobre estes acontecimentos decisivos e a sua repercussão política nacional provam acima de qualquer dúvida essa análise.

 

A manobra desesperada dos grandes capitalistas

 

A crise de quinta-feira levou à convocação de uma manifestação na segunda-feira que todos os que têm capacidade para analisar minimamente a situação política sabiam que seria gigantesca. A convocação da manifestação no Facebook, na própria sexta-feira, já registrava mais de 100.000 pessoas confirmadas. A manifestação estava preparada para ser a marcha fúnebre da direita em S. Paulo nacionalmente e dos seus propósitos golpistas em nível nacional, articulados na embaixada norte-americana. Os preparativos do golpe, que seria um coup de main, senão um coup d’etat, viriam a se mostrar claramente na semana seguinte à repressão.

 

A situação extremamente crítica forçou a direita a ensaiar um verdadeiro golpe, mas contra o movimento popular, que foi organizado emergencialmente de quinta a segunda-feira. A imprensa colocou em ação toda a sua capacidade de ação com as seguintes diretrizes: ocultar a repressão da quinta-feira, apoiar a manifestação que estava sendo convocada, chamar à realização de uma manifestação pacífica, ordeira e “cívica”, ou seja, o oposto do que tinha acontecido até aí. Era preciso conter a raiva e a rebelião popular contra a repressão e diluir completamente as reivindicações. Até esse ponto, não se tratava de uma manobra muito distinta daquelas que estes mesmos capitalistas da comunicação, a serviço dos grandes capitalistas em geral, havia realizado antes, durante a luta contra a ditadura, nas Diretas Já, no Fora Collor etc. Seu objetivo era diluir, conter e, finalmente, asfixiar a manifestação popular contra o governo Alckmin. Ainda mais quando as manifestações em solidariedade a esse movimento começavam a ocorrer em todo o país e até mesmo fora do país.

 

Não nos podemos esquecer de que o crescimento das manifestações poderia e, na medida em que não terminaram completamente, poderá quebrar as outras duas pernas do tripé que sustenta o regime político, ou seja, os governos estaduais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, este último, também um baluarte do PSDB.

 

A burguesia, porém, era consciente de que essa manobra para diluir e estrangular o movimento não era suficiente. Finalmente, uma manifestação pacífica, com os mesmos objetivos e sob a mesma direção que havia atuado até então, somente serviria para transferir a luta contra a direita para o terreno eleitoral, beneficiando objetivamente o PT, e para postergar a ofensiva popular nas ruas. Era necessário fazer intervir um novo fator para destruir ou manipular os efeitos da manifestação. Era preciso efetivamente disputar a direção da mobilização em um sentido mais profundo e buscar direcionar o ponteiro da manifestação contra o governo, contra o PT e contra a esquerda em geral.

 

A burguesia em crise apela para os seus pitbulls

 

A burguesia, incapacitada de intervir contra a esquerda por meio da força policial, decidiu intervir utilizando em seu favor as forças para-policiais da extrema direita nacional.

 

Essa escolha não foi puramente intelectual, mas foi o resultado de uma situação que está em marcha há algum tempo no Brasil, ou seja, um tenaz esforço de organização de uma direita militante, fascista ou filo-fascista, para se opor à militância operária e de esquerda.

 

Esse é um fenômeno mundial cuja base fundamental é a desagregação dos partidos tradicionais da direita como resultado do imenso fracasso da política neoliberal, enfrentada pelas massas  com verdadeiras insurreições populares como na Bolívia, e soterrada pela crise capitalista. A decomposição da política implica inevitavelmente na desagregação das forças que lhe servem de base.

 

A divisão da direita tradicional levou ao surgimento de uma ala ortodoxa de direita no interior desses partidos cuja base de desenvolvimento é a propaganda de que a política neoliberal fracassou não porque encontrou pela frente a resistência das massas, mas porque não foi levada adiante de maneira radical e coerente. A direita ortodoxa não quer se dobrar à pressão popular, que não compreende muito bem, e quer restringir a política de aliança com as alas democráticas, social-democratas e frentepopulistas do regime político. São claramente nesse sentido, uma evolução da direita tradicional para posições fascistas, independentemente da sua diversidade atual. É um fenômeno paralelo ao que acontece dentro do movimento operário e popular dirigido pela esquerda burguesa e conciliadora. Há um desenvolvimento no sentido de ultrapassar as limitações dessa esquerda em um sentido oposto, revolucionário.

 

Nesse sentido, o Partido Republicano norte-americano deu lugar ao Tea-Party; dentro da UMP francesa, após o colapso de Sarkozy, a ala oficial foi derrotada pela facção de Jean-François Copé, que busca uma aliança com o partido da extrema-direita da Frente Nacional, atual Acquamarine, de Marine Le Pen; na Inglaterra, a desagregação acelerada do Partido Conservador destruído por Margareth Thatcher está levando ao crescimento da extrema-direita do UKIP, que teve um extraordinário desempenho nas eleições recentes.

 

As organizações de direita se multiplicam no mundo todo em resposta à enorme crise capitalista e são, queiram ou não, uma arma contra a classe operária mundial.

 

No Brasil, a crescente debilidade da direita no terreno eleitoral tem levado ao surgimento de vários grupos de extrema-direita que pregam contra a moderação da direita institucional e que defendem abertamente uma política de força contra a esquerda, ou seja, contra o movimento operário, que frequentemente aparece como uma defesa do golpe militar de 64.

 

No Brasil, logicamente, a extrema-direita não apenas é mais fraca do que nos países desenvolvidos, como é muito mais dependente do aparelho de Estado, em particular do aparelho repressivo. A extrema-direita é extremamente reacionária e antipopular e o Brasil, como todos os países atrasados, é um país pobre onde não há uma verdadeira base popular, nem mesmo minoritária, como nos países imperialistas, para uma política aberta de defesa dos interesses capitalistas e dos privilegiados em geral, que vivem em uma permanente guerra contra a população pobre. O que está particularmente ausente no Brasil é uma classe camponesa consolidada e uma aristocracia operária conservadora, que aparecem nos países desenvolvidos e que podemos ver no cordão bíblico dos Estados Unidos ou nas poderosas e ultraconservadoras organizações sindicais burocráticas da Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos etc.

 

O impulso para a organização da direita nacional vem, em grande medida, de fora, é parte do processo de organização golpista dos empresários, do governo e do aparelho de inteligência do imperialismo, em especial do norte-americano. O Instituto Millenium brasileiro é um desses centros organizadores impulsionados de fora que, assim como outras organizações, a maioria com laços diretos com o imperialismo norte-americano, contribuem para a proliferação de grupos de extrema-direita no Brasil.

 

A imprensa capitalista é também um dos viveiros onde cresce essa direita. Revistas de grande circulação como a revista Veja assumiram claramente uma política de direita mais aberta, mais radical, mais próxima da extrema-direita, e com a sua retórica fascistoide, inflamam elementos de classe média desesperados, cuja grande propensão política é buscar bodes expiatórios para as suas dificuldades, causadas pelo grande capital. A tendência ao empobrecimento de setores da pequena-burguesia leva setores conservadores a se radicalizarem sem perderem o seu impulso conservador; e esta é a base social do fascismo.

 

A direita, organizada pelo aparato policial clandestino do PSDB, foi chamada à manifestação organizadamente, não para impor uma política de direita, mas para anular a política da esquerda e das lideranças do movimento. O golpe seria dar ao protesto o caráter de um não protesto, uma manifestação inócua, ecumênica, de “todos os brasileiros”, com a bandeira do Brasil, hino nacional, em resumo, uma festa, ou seja, o exato oposto de uma manifestação. Para isso, seria necessário anular a esquerda completamente. Essa necessidade levou a extrema-direita e os policiais infiltrados a usar uma política violenta de expulsar a esquerda da manifestação, não com o apoio da massa presente, mas aproveitando-se da confusão e da inconsciência dessa massa. O que foi feito e, em certa medida, com sucesso, devido fundamentalmente à covardia da esquerda pequeno-burguesa, como o Psol e o PSTU, que não quiseram enfrentar a direita violenta e que falsificaram a situação apresentando a ofensiva direitista como uma opinião popular “atrasada”, o que nada tinha de realidade.

 

A necessidade extrema, no entanto, obrigou a direita a mostrar as suas cartas antes do que seria necessário. Tornou-se conhecimento comum que o fascismo se organiza no Brasil para atacar a classe operária e que os propósitos da direita são claramente golpistas contra o PT.

 

Como se organiza um golpe de Estado

 

Toda a esquerda pequeno-burguesa, do PT ao Psol e PSTU, passando por PCdoB e outras variantes, têm feito o impossível para ocultar a ação política da direita e as tendências inerentemente golpistas da sua ação. Esta é uma das leis fundamentais da política pequeno-burguesa de conciliação de classe de frente popular: ocultar o caráter antidemocrático e violento da burguesia, anestesiando as massas com a miragem do jogo eleitoral e do reformismo medíocre, sem resultados, das negociações parlamentares.

 

A vitória eleitoral do PT não foi uma verdadeira vitória eleitoral, mas um acordo com a burguesia para a preservação do regime político após o colapso da política neoliberal de FHC. Esse acordo precário rompeu-se com a crise de 2008 e as tímidas reformas sociais do PT tornaram-se insustentáveis para a burguesia que busca desesperadamente descarregar a crise totalmente sobre os ombros das massas. O neoliberalismo privatizante do PT, embora um duro golpe contra o país e a sua classe trabalhadora, parece ao setor fundamental do capital financeiro nacional e internacional como extremamente limitado. A burguesia necessita de um ataque mais profundo contra as massas ao estilo do que está sendo feito nos países europeus para manter a sua posição dentro do pais e internacional. O que tem impedido até o momento a mudança na situação é a divisão interna da burguesia e a rebelião latente das massas.

 

O grande problema desse setor da burguesia é justamente o arremedo de regime representativo que existe no Brasil, onde, da mesma forma em que todos os países latino-americanos, com o desenvolvimento da crise capitalista, são favorecidos os partidos com maior apelo popular e reformistas em alguma medida, ou seja, os representantes da burguesia nacional contra os representantes declarados do imperialismo. Na Venezuela, Argentina, Equador, Brasil, a mera manipulação eleitoral não é suficiente para uma direita que tem cada vez menos votos e não consegue agrupar o conjunto da burguesia em torno dela como fez com a política neoliberal.

 

O resultado fundamental dessa limitação da direita diante de forças que se apresentam como mais democráticas diante do eleitorado popular não é, como esperariam os crédulos da democracia, um fortalecimento do regime parlamentar e do Estado de Direito, mas o exato oposto, o seu enfraquecimento, pois a parcela mais poderosa da burguesia busca recuperar a sua posição por meios que fogem cada vez mais ao mero jogo parlamentar e que se inclinam na direção do golpe de Estado.

 

Os atuais regimes nacionalistas, socialdemocratas e frente-populistas na América Latina são o governo da burguesia nacional, reformista e liberal que foi estabelecido com base no esgotamento da política neoliberal, que levou milhões a uma situação insustentável sem conseguir nenhum avanço na recuperação da capacidade do capitalismo funcionar. Isso quer dizer que foram uma solução forçada, de compromisso e emergencial da burguesia diante da crise, mas não a sua política fundamental.

 

A campanha contra o PT é uma típica campanha golpista. Seu centro é o velho refrão da burguesia golpista de antes de 1964. O Brasil todo, de 1950 a 1964, foi obrigado a ouvir a cantilena dos Lacerdas e outros udenistas que se erguiam como defensores da moral pública. O único objetivo dessa campanha moral era um resultado material: abrir a economia brasileira e destruir boa parte dela para satisfazer a fome de lucros dos monopólios estrangeiros. Outro tema constante da agenda política dos reacionários era a defesa da democracia contra a falta de democracia do varguismo. Esse objetivo foi realizado por meio do golpe fascista de 1964 e dispensa maiores comentários.

 

A questão do mensalão tem sido o eixo fundamental da campanha. A direita, que domina a esmagadora maioria da imprensa capitalista nacional, criou o mito de que o mensalão teria sido o maior escândalo de corrupção que o Brasil já conheceu, uma afirmação cínica a ponto de ser cômica para os que conhecem, por pouco que seja, o interior do Estado nacional.

 

O julgamento do mensalão pelo STF teve todas as características de um verdadeiro golpe de Estado: foi realizado em meio às eleições, com os juízes assumindo o papel de propagandistas políticos do partido de direita, um procedimento  escandaloso que somente tem curso entre uma parcela da população devido ao controle da imprensa e à completa capitulação do PT diante dessa manobra política. Um julgamento sem rigor que pisoteou todas as normas possíveis do direito burguês democrático, mesmo em um sentido muito superficial, é uma ação golpista e concertada.

 

O caráter golpista da ação da direita vem se avolumando e veio sair à luz do dia nas passeatas, onde falsificam a realidade, mostrando através de um verdadeiro truque de prestidigitação a manifestação como o oposto do que era, ou seja, não contra a direita e os seus ataques ao povo, mas contra a corrupção do PT. As falsas manifestações de massa, manipuladas pelos meios capitalistas de comunicação são uma manifestação clara da tendência golpista.

 

A maior parte dos analistas acredita que há uma contradição absoluta não dialética entre a luta eleitoral e o golpe de Estado, como uma muralha intransponível. Na realidade, a relação entre ambos é de alimentação mútua, quanto mais se exacerba a luta, mais a disputa eleitoral alimenta o golpe de Estado e este radicaliza a disputa eleitoral.

 

Quem estava nas ruas afinal e por quê?

 

O maior mito já criado acerca das manifestações é sobre o perfil dos manifestantes. Sociólogos amadores já tiraram a conclusão de que são nacionalistas, afinal portavam bandeiras do Brasil; são de direita, uma vez que a Rede Globo, instrumento sociológico fundamental no Brasil, mostrou cartazes contra o PT e até defendendo propostas muito à direita; que são contra partidos, afinal os partidos de esquerda foram vaiados e atacados por manifestantes. Sabe-se que as pessoas assustadas veem fantasmas atrás de cada porta. É natural que a esquerda, que foi completamente tomada de surpresa pelas manifestações visse todos esses fantasmas. O problema, porém, é que eles não são reais e sequer é correto fazer a análise a partir da observação de determinados fatos que ocorrem dentro de uma multidão confusa e heterogênea ou, para efeito de método, qualquer manifestação.

 

É preciso fazer uma análise objetiva do desenvolvimento das manifestações, o que, para a maioria, parece não ter importância alguma ou certamente menor do que o testemunho de um cartaz escrito em papel de cartolina. A maior de todas as manifestações foi a de segunda-feira. O que provocou o afluxo da multidão às ruas? Obviamente, e inconfundivelmente, a repressão da quinta-feira passada. O clima de mobilização cresceu com o repúdio à violência da PM contra o movimento dos jovens. O que isso tem a ver com todo o conservadorismo que as testemunhas reputam tão importante? As pessoas viram na repressão, um motivo para protestar contra os partidos, contra a PEC 37, contra a liberação do aborto e a favor da ditadura militar e pelo esmagamento do comunismo. Claro que basta formular o problema para ver que ele não faz sentido algum.

 

Todo o segredo do ilusionismo está na engrenagem política da manifestação e não na mística análise da “opinião do povo” dos sociólogos sem carteirinha ou com carteirinha.

 

O primeiro fato fundamental é que a direção do movimento era muito fraca organizativamente para tamanho crescimento da mobilização, na qual a maioria esmagadora dos participantes era de esquerda e apoiava em algum grau a luta contra o Alckmin e pelo transporte. Essa debilidade foi ainda terrivelmente agravada pelas manias e preconceitos inculcados naquele movimento há tempos, de que ele deveria ser “horizontal”, ou seja, sem carros de som nem organização formal e de que deveria ser apartidário. Essa posição que corresponde a um anarquismo de classe média, e que é a “ideologia” dos integrantes do MPL, permitiu que a direita, mais organizada e mais dissimulada do que qualquer esquerdista, se impusesse de maneira agressiva à manifestação, ainda que relativamente. No meio da confusão e da dispersão enorme, da ausência de uma organização central, foi extremamente fácil para um grupo reduzido de direitas atacar individualmente militantes ou grupos de militantes da esquerda dentro da manifestação, acobertados pela palavra de ordem absurda de “abaixo os partidos”. A direita organizada infiltrou-se ruidosamente no meio da manifestação com as suas próprias palavras de ordem, altamente impopulares, como a defesa da volta dos militares ao poder. No entanto, a dispersão, a confusão, o clima de extrema desorganização, não permitiram reação alguma, ainda mais de pessoas não acostumadas a nenhuma manifestação ou luta política em geral. Por sua vez, as redes de TV selecionavam a seu critério como mostrar a manifestação e a diluíram ainda mais em um espírito de completa abstração com frases tais como a de “como isso é lindo”, “o povo está na rua”,  “paz”, “somos todos brasileiros”. Obviedades e coisas sem nenhum conteúdo real ou mesmo sem sentido (se somos todos brasileiros, por que saímos à rua, o país está sendo ameaçado ou será que ganhou a Copa do Mundo com antecedência?).

 

A mistura dentro da manifestação era heterogênea, comportando todo tipo de gente, mas sobretudo uma parcela expressiva de classe média, em grande parte de esquerda, mas cheia de preconceitos pacifistas e morais, em bem menor parte conservadora. Embora os participantes originais da manifestação estivessem lá em grande número estavam completamente desorganizados e dispersos. As palavras de ordem reacionárias, como a de “fora todos os partidos” eram minoritárias e em alguns momentos eram confundidas pelos mais desavisados com um protesto de esquerda.

 

O que facilitou o relativo crescimento dessa confusão e uma pequena liberdade para a direita foi a completa falta de compreensão da esquerda, boa parte da qual está educada para acreditar que a burguesia é pacífica e democrática e que o nazi-fascismo só existe em filmes e que o Brasil está acima dessas coisas estranhas. A esquerda, majoritária em todas as passeatas, deixou o caminho livre para uma minoria de direita impor-se no meio da confusão. Para aqueles que nunca viram nem estudaram o mecanismo do golpe de Estado essa foi uma experiência em primeira mão ainda que em miniatura. Os golpes de Estado sempre são o golpe de uma minoria organizada e montada no poder do Estado e do dinheiro contra uma maioria desorganizada e confusa. A política da esquerda pequeno-burguesa é sempre um fator de desorganização das lutas das massas. Esses são os fatores fundamentais.

 

O estrangulamento da mobilização em S. Paulo

 

A manifestação convocada para a Praça da Sé na terça-feira foi a mais confusa e a mais dominada pela direita de todas e o número de manifestantes diminuiu consideravelmente em relação à segunda-feira. Outro erro dos que estavam encarregados da convocação foi chamar o ato para o dia seguinte. Na realidade, não fizeram nenhuma análise do que estava acontecendo no quadro político geral, preocupados apenas com a negociação com os governos municipais e estaduais. De um dia para o outro, a situação ficou ainda mais difícil para a esquerda e mais fácil para a direita.

 

A esquerda acuada pelo que havia acontecido na segunda-feira simplesmente não compareceu à manifestação, o que facilitou ainda mais a ação da direita contra nosso partido e os poucos  que decidiram levantar uma bandeira. A direita, mais à vontade, partiu para a agressão contra militantes ou pequenos grupos isolados dominando completamente a manifestação.

 

Alckmin e Haddad cederam na quinta-feira à reivindicação, mostrando que já não tinham condição de sustentar a sua resistência à manifestação, mas também que temiam o acirramento da luta no interior da mobilização e o seu crescimento nacional. A vitória do movimento é inconteste e fica realçada pelo fato de que a imprensa mais direitista, como a revista Veja, saiu no final de semana a denunciar que a vitória não havia sido “completa”, uma tática para roubar às massas o entusiasmo por essa vitória sobre um governo repressor como é o governo do PSDB. A burguesia se preocupa com que as massas não consigam medir efetivamente a sua força, o que certamente impulsionará novas manifestações e de maior ambição.

 

Diante da vitória, a esquerda, inclusive o PT, decidiu comparecer em maior número à marcha da vitória, inclusive os próprios militantes do PT, despertados pela demonstração de força da direita dentro da manifestação. A discussão sobre as agressões e a denúncia da ação da extrema-direita contribuíram para alinhar a todos contra  a direita. Já não havia a mesma confusão e ilusão de dois dias antes.

 

 A concentração da esquerda no MASP agrupou mais de 500 pessoas convocadas especialmente para se impor contra a direita.

 

A participação da esquerda era muito maior que o restante da manifestação inteira, o que pode ser observado porque a passeata se dividiu pelas duas mão da Av. Paulista. Esse fato desmascarou dois dos mitos. Em primeiro lugar, que a maioria das manifestações era conservadora, antipartido etc. Em segundo lugar, que a orientação que foi imposta à manifestação pela imprensa capitalista teria sido um eixo da manifestação e não o seu estrangulamento. A quinta-feira mostrou que a burguesia já havia estrangulado efetivamente o impulso dos que reagiram à repressão do dia 13 de junho.

 

A posição favorável da esquerda também foi perdida por motivos puramente políticos. Várias organizações da esquerda atenderam ao chamado de levantar bandeiras na manifestação da vitória, mas atenderam ao chamado com os seus próprios conceitos políticos, ou seja, de que não se tratava de organizar uma ofensiva contra a direita, de enfrentar fisicamente a repressão que havia se transferido para dentro do movimento e sim que a própria presença majoritária da esquerda já realizaria toda a tarefa. A esquerda não foi ao ato para combater o fascismo em broto, ou seja, uma violência e um golpe contra a manifestação, e sim para fazer uma parada eleitoral e aterrorizar os policiais à paisana, os skinheads e os integralistas com a imponência de uma propaganda puramente eleitoral. O resultado dessa comédia foi o de que, quando cerca de 50 elementos da direita partiram para dentro da manifestação com gás de pimenta, bombas de efeito moral, cassetetes e uma ou outra faca, a esquerda se dispersou rapidamente e não apenas não enfrentou a violência como procurou evitar que outros, como os militantes do PCO, que já esperavam por essa ação, reagissem a ela. Um militante do PCO foi contido por um segurança do PSTU para que não reagisse à provação direitista. Essa política parlamentar, de crença na conciliação permanente, no pacifismo e na superioridade moral da democracia conduziu a passeata, que seria uma vitória segura da esquerda, a um empate.

 

O movimento nacional

 

O movimento nacional foi detonado pelas mobilizações de S. Paulo e pela repressão policial, particularmente depois do dia 13 de junho.

 

O movimento todo tinha muita semelhança com o de S. Paulo, a começar pela ampla presença da juventude. Em Minas Gerais, era totalmente dirigido contra o governo do PSDB, que reprimiu com brutalidade as manifestações. No Rio de Janeiro incorporou uma parcela ainda maior da população proletária e, embora a presença da direita também se manifestasse no meio da confusão e desorientação geral, essa presença estava mais diluída. Também, em todos os estados, atendendo ao apelo carnavalesco da imprensa capitalista, as bandeiras brasileiras apareciam em número considerável, sublinhando ainda mais a falta de orientação da manifestação toda.

 

Em muitos lugares, o movimento assumiu claramente também a bandeira de luta pela revogação das tarifas e em várias cidades foi vitorioso ainda antes do de S. Paulo. Em geral, o objetivo das manifestações era o de protestar diante das sedes dos governos municipais e estaduais, evidenciando a falácia divulgada pela imprensa de que o movimento seria contra o governo nacional do PT. Em vários lugares, Belo Horizonte em particular, o movimento dirigiu-se aos jogos da Copa, além das sedes dos governos. Para a máquina de desinformação da imprensa, isso seria uma demonstração de um repúdio à Copa do Mundo no Brasil por parte da população, uma rematada sandice, propagada intencionalmente em uma campanha orquestrada contra a Copa do Mundo pela direita para impedir que o governo use na sua demagogia eleitoral a Copa do Mundo como elemento decisivo na eleição de 2014 que será realizada imediatamente após a competição. Na realidade, os manifestantes buscam utilizar o fato de que a Copa atrai a atenção popular para protestar e mostrar as suas reivindicações. Outro dado importante é que o governo do PSDB proibiu qualquer tipo de manifestação em 800 cidades do Estado, o que cria automaticamente um movimento contra a repressão policial-estatal.

 

A tendência que se verifica neste momento é a de que, na maioria dos lugares, o movimento comece a refluir no plano imediato, em função do seu término em S. Paulo, o que se dará em ritmos desiguais em cada lugar e dependendo sobretudo da repressão policial, principalmente em BH e Rio de Janeiro.

 

A revolução dos eleitores: “contra todos os partidos”

 

A improvisação e o desespero podem ser os piores conselheiros. Para desarmar a bomba prestes a explodir após o dia 13 de junho, a direita, apoiada pelas redes de TV direitistas, lançou duas palavras de ordem completamente sem sentido. De um lado, cartazes muito cuidadosamente improvisados diziam “contra todos os partidos”, e alguns grupos gritavam “o povo unido não precisa de partido”.

 

São palavras de ordem completamente sem sentido, porque até mesmo os regimes ditatoriais mais bonapartistas acabam tendo uma organização partidária e um programa que lhes deem alguma coerência. O funcionamento da sociedade política sem partidos é logicamente uma fantasia delirante própria dos anarquistas e dos fascistas, manifestações políticas da pequena-burguesia encurralada pelo capitalismo e do individualismo tipicamente pequeno-burguês. A experiência histórica, porém, nos mostra que o fascismo no poder substitui os fascistas “sinceros” pelas mais burocráticas máquinas partidárias e estatais de que se tem notícia, apoiadas na monstruosa burocracia das forças armadas. Já os anarquistas acabam a reboque dos partidos democráticos (I Guerra Mundial, Revolução Espanhola de 1936) ou se diluindo nos partidos revolucionários (Revolução Russa de 1917), mas nunca conseguem ter um verdadeiro papel independente que consiste na criação de uma terceira via entre a revolução e a contrarrevolução, entre a burguesia e o proletariado. No caso específico do Brasil, sequer se poderia pensar em tal coisa, que significaria impedir forças sociais poderosas como os capitalistas e a classe operária de se organizar politicamente para fazer valer os seus interesses. Somente uma ditadura muito brutal, baseada, no entanto, em um regime de partido único, cujas frações seriam partidos dentro do partido, poderia conseguir realizar esse feito e, mesmo assim, de forma falaciosa.

 

Fato significativo é que cerca de 85% da população votaram na última eleição e naturalmente votaram em algum partido, porque o regime político brasileiro, antidemocrático, não permite candidaturas sem partido. Se tais palavras de ordem fossem realmente a política que domina o povo, como apresentaram, teríamos praticamente uma revolução dos eleitores contra si mesmos.

 

Não temos dúvida de que, na próxima eleição, a esmagadora maioria dos que estiveram na manifestação irá votar em candidatos de algum partido.

 

Há sempre, entretanto, alguma razão mesmo na pior loucura e em política, que é uma manifestação essencialmente prática do mundo real e material, as fantasias não podem ser colocadas em prática e se tornam, por este motivo, quando se tenta colocá-las em prática, em uma outra coisa, independentemente da vontade de quem a formulou, compatível com o mundo real. Nesse sentido, a fantasia e loucura políticas têm que ser interpretadas para descobrir a qual realidade essas fantasias correspondem no mundo real.

 

No mundo real, as coisas se passam da seguinte maneira. Os partidos burgueses tradicionais, várias vezes reciclados, como se fossem papel velho, estão completamente esgotados e são rejeitados, não pela manifestação e sim pelo eleitorado. Os partidos de direita são os mais abalados.  Um dos aspectos centrais de qualquer processo revolucionário em desenvolvimento é o fato das massas ultrapassarem os partidos tradicionais da burguesia, em primeiro lugar os mais conservadores, mas também os liberais, democráticos e reformistas. No Brasil, esse processo está muito desenvolvido porque os partidos fundamentais da burguesia, em primeiro lugar o PMDB, se esgotaram durante o governo Sarney quando tiveram que enfrentar a classe operária em ascenso de 1983 a 1989.

 

O único partido que ainda mantém autoridade sobre as massas é justamente o PT.

 

A luta contra todos os partidos, contra o partidarismo em geral, é a luta dos partidos que foram completamente rejeitados pelas massas contra os partidos que não foram. Se a burguesia não consegue dizer, “largue o PT, venha para o PSDB”, então ela diz, “largue todos os partidos, todos são maus”. É um velho truque da política burguesa que leva ao bonapartismo, ao golpe de Estado e ao fascismo.

 

Toda a campanha da direita nas manifestações, incluindo a proposta do senador Cristovam Buarque de dissolução de todos os partidos, apontam imediatamente para que a eleição de 2014 seja feita em torno de indivíduos e não de partidos, ou seja, para o reforço do tradicional sistema político brasileiro que se caracteriza pela incapacidade da burguesia de construir partidos nacionais sólidos. A formação do partido Rede da Sustentabilidade – que já busca disfarçar-se eliminando o partido do nome – é parte dessa manobra para atrair o voto da classe média despolitizada e confusa, para dividir o voto contra a direita e permitir a vitória da direita.

 

Abaixar as bandeiras ou lutar por um partido operário

 

A esquerda pequeno-burguesa, cuja grande arte política é ver tudo do ponto de vista eleitoral e parlamentar apesar da sua escassa capacidade eleitoral, já lançou a sua tradicional política de mimetização diante da ofensiva da direita. Se “as manifestações” rejeitam os partidos, vamos abaixar as bandeiras. Se “o povo” não quer partido, vamos ser partidos que sejam o menos possível partido. Essa camaleônica falta de personalidade da esquerda pequeno-burguesa é uma característica inerente a esse tipo de esquerda. Nisso são uma caricatura da política burguesa que procura manipular o eleitorado em função dos seus interesses de classe, mas não sacrificar os seus interesses para se adaptar ao eleitorado.

 

Esse instinto para a mimetização, porém, impede a esquerda pequeno-burguesa de ver o lado dinâmico da situação de crise que levou a direita a um ataque frontal a todos os partidos e entregou o jogo, mostrando ao mesmo tempo que o ataque a todos os partidos é fundamentalmente um ataque aos partidos “vermelhos”. De um lado, a burguesia colocou na mesa o debate do partido e mostrou, para os mais esclarecidos, que a luta contra a organização partidária é uma luta central para ela. Em segundo lugar, levou a questão do antipartidarismo da pura retórica demagógica para a prática mostrando que a conclusão lógica do antipartidarismo é a ditadura e o golpe, esclarecendo assim ainda mais a questão. Em terceiro lugar mostrou que sem organização política, uma organização que não é apenas e nem essencialmente eleitoral, não é possível enfrentar o que a burguesia está cozinhando no seu caldeirão de bruxa: a ação fascista violenta contra todas as organizações operárias e democráticas.

 

A conclusão inevitável desses fatos é que se torna necessário construir um partido, na medida em que o PT não cumpre efetivamente esse papel e é, claramente, o principal responsável, com a sua política de conciliação de classes, pela ofensiva da direita e pelo enfraquecimento das organizações operárias e democráticas.

 

A proposta de frente de esquerda para defender o movimento de luta contra as agressões fascistas foi recebida por uma ampla camada de militantes com entusiasmo e expressa a tendência geral a construir um partido operário, mas, fundamentalmente, um partido operário de ação e não eleitoral, vale dizer, um verdadeiro partido operário, um partido revolucionário. As necessidades da luta vão servir para esclarecer de maneira cabal esse problema e dar lugar a um partido operário que reúna todo o ativismo da juventude e da classe operária.

 

A questão do partido está colocada integralmente na ordem do dia.

 

“Vandalismo”: o nome da burguesia para a luta revolucionária das massas

 

Se houve um tema que se manteve constante em todas as etapas da manifestação e que foi unânime, da esquerda pequeno-burguesa à extrema direita, passando pelo governo do PT, foi o do “vandalismo”, ou melhor, da condenação do “vandalismo”.

 

O tema em si é muito pouco complexo e foi esclarecido até mesmo através do humor. Algumas mensagens da internet mostravam um quadro da Revolução Francesa, no dia histórico da derrubada da Bastilha e dizia, “derrubar a Bastilha não! É vandalismo, bora fazer uma petição online!”. Uma outra mostrava nos levantes do Leste Europeu, a cabeça de uma estátua de Stálin, enquanto um manifestante dizia para o outro: “a estátua do Stálin é patrimônio público”. É uma crítica perfeita ao cinismo, à hipocrisia da burguesia, da polícia e dos governos e à atitude beata da esquerda pequeno-burguesa que fala em revolução, mas chora quando vê uma janela estilhaçada.

 

Já Marx havia ensinado coisa muito diferente quando assinala, durante a Revolução Alemã de 1848, que os revolucionários não deveriam conter as massas quando estas se pusessem a destruir símbolos do regime etc., mas estimulá-las.

 

Um argumento particularmente cretino – uma palavra que Marx usava saborosamente contra a esquerda pequeno-burguesa da sua época – é o de que o suposto vandalismo é obra de pequenas minorias, dando a entender que seria apoiado e legítimo se fosse de uma maioria. Nesse caso, não seria melhor propor a expansão do vandalismo ao invés de condená-lo?

 

Deixando de lado os argumentos de tipo parlamentar, o problema é simplesmente que o temor da burguesia ao “vandalismo” é um disfarce do pavor de que as massas passem da manifestação “pacífica”, ou seja, inócua, à ação violenta e revolucionária.

 

A ação violenta, como somente poderia ser, partiu da juventude, em particular de um setor proletário da juventude, mais decidido e radical. É a expressão da evolução da luta geral para métodos mais eficazes superando a política puramente parlamentar da esquerda pequeno-burguesa.

 

Em grande medida, o movimento foi vitorioso graças aos “vândalos” que reagiram como puderam à repressão policial. O medo dos governos estava em que essas ações se generalizassem com a ocupação de edifícios públicos e um agravamento da crise política. Basta conferir quantas vezes os órgãos da imprensa do grande capital e da direita usaram as expressões “paz”, “manifestação pacífica”, a qual foi considerada logicamente “linda”.

 

O mesmo cenário havia se repetido na USP, onde o governo do Estado queria usar de máxima violência policial contra os estudantes e colocar a universidade em estado de sítio, mas a reação estudantil somente poderia ser absolutamente pacífica, ou seja, os estudantes teriam que baixar a cabeça diante da repressão, o que não é apenas contrarrevolucionário, mas indigno. Foi apenas a atitude dos “vândalos” que colocou em xeque a ditadura do PSDB. A esquerda pequeno-burguesa do PSTU e do Psol também aí condenou o “vandalismo” de uma minoria que, segundo eles, não teria sido aprovada pela maioria, que supostamente seriam eles.

 

Embora seja um truísmo, para usar um anglicismo tão de acordo com a nossa época, é preciso dizer: não há revolução sem violência. E mesmo que os revolucionários fossem mais exageradamente pacíficos do que são, a burguesia nunca lhes permitiria o luxo de uma revolução pacífica e os faria dançar conforme a música ou perecer. Somente preconceitos arraigados podem levar alguém a pensar de forma diferente depois de tantas manifestações da própria burguesia. Dessa forma, não faz sentido ignorar a presença da violência na sociedade e sim compreendê-la e preparar-se conscientemente para ela.

 

Nesse sentido, se a ação dos “vândalos” é desorganizada, deve ser organizada.

 

Se a ação dos “vândalos” é sem objetividade, deve ser fornecido um objetivo claro a ela.

 

Se a ação dos “vândalos” é minoritária é preciso torná-la geral.

 

E não combatê-la.

 

A frente popular balança; cairá? Queremos que caia?

 

Embora as manifestações não sejam fundamentalmente dirigidas contra o governo federal como quer a máquina de desinformação que é a imprensa capitalista, não há dúvida de que todo o regime político burguês foi sacudido e também a frente popular no governo. É importante assinalar o fato de que o principal aliado do PT, o governo do Rio de Janeiro, foi tão duramente atingido quanto os governos do PSDB de S. Paulo e Minas Gerais.

 

Não se pode descartar que as manobras golpistas da direita conduzam à derrota do PT nas eleições, por meio de um golpe institucional ou por uma medida de força, principalmente porque a política do próprio PT colabora ativamente com as manobras da direita. Isso, no entanto, não deve ofuscar a questão central que é da crise da direita e a sua cada vez maior incapacidade não apenas para governar em geral, mas para impor a política de ataque às massas. A vitória do passe livre em S. Paulo é a maior demonstração da fraqueza da direita para impor essa política.

 

Diante desse quadro, qual deve ser a política da classe operária? Parte da esquerda chegou à conclusão, desmentida de maneira contundente pelos recentes acontecimentos de que não havia mais direita no país, de que o PT havia agrupado toda a burguesia detrás de si, que os partidos de oposição eram um tigre de papel etc. Alguns foram inclusive ao extremo de dizer que, se houvesse algum golpe no Brasil, ele partiria do PT. Vimos a mesma posição em relação a todos os governos nacionalistas latino-americanos e, no caso recente da Venezuela, o PSTU nos esclareceu que não havia golpe e nem mesmo “dinâmica golpista”. No Brasil, alguns grupos como o Psol não conseguiram ainda chegar a uma conclusão a respeito e assinalam claramente a necessidade de manter uma frente com os elementos que, em S. Paulo, atacaram os “comunistas” dentro das marchas e pregavam o golpe militar. Segundo eles, é o “povo” naturalmente confuso e que é preciso esclarecer. Não há dúvida de que o esclarecimento seja sempre necessário, mas não atua em favor da clareza fechar pura e simplesmente os olhos à ameaça da direita e, mais ainda, participar da campanha “contra a corrupção” que somente pode ter como beneficiário o grande capital e a direita que se opõe ao PT.

 

Um dos argumentos mais extraordinários apresentados por esta esquerda pequeno-burguesa é o de que “não podemos deixar a luta contra o PT para a direita e, em particular, não podemos deixar a bandeira de luta contra a corrupção para a direita”. Todos estes argumentos apenas provam que estamos diante de uma esquerda que não aprendeu o abc da luta política de classe e revolucionária. Não compreenderam que a luta de classes não é uma cruzada moral, mas que o programa e as bandeiras de agitação que se depreendem dela servem justamente para agrupar militantes e as massas em um sentido determinado. A bandeira da pseudo-luta contra a corrupção serve apenas para organizar a clientela política dos corruptos de direita contra a esquerda corrupta ou não. Usado no interior do movimento operário e da juventude não passa de um elemento de confusão. Esse princípio elementar da luta política foi provado nas manifestações. Se a esquerda pequeno-burguesa moral continuar acompanhando a agitação política da direita não estará disputando com ela a propriedade da luta contra o PT, mas sendo absorvida pela direita. Isso ficou demonstrado na posição da esquerda diante do julgamento do mensalão, onde sacrificaram a luta democrática para levar adiante a miragem da luta contra a corrupção. O julgamento do mensalão buscava enfraquecer o PT, criar uma plataforma eleitoral para a direita, criar novas lideranças direitistas (Joaquim Barbosa) e tudo o que foi obtido foi isso. Para o movimento operário e para a esquerda ficaram o reforço da repressão dos julgamentos arbitrários. O mesmo se dá agora com a luta contra a PEC 37, que diminui o poder do Ministério Público, supostamente, para reprimir a corrupção. Ao fazer eco dessa outra campanha da direita, a esquerda pequeno-burguesa reforça o poder repressivo de um organismo não eleito pelo povo para cometer ainda mais arbitrariedades. Nesse caso, a campanha nada mais é que um fortalecimento da repressão geral do Estado contra o povo.

 

A luta contra a corrupção não é uma luta do movimento operário, que não defende ideais abstratas que não podem ser colocadas em prática na realidade, mas os seus próprios interesses materiais. A denúncia da corrupção, que deve ser feita contra o regime burguês de conjunto e não apenas contra a esquerda do regime, esquecendo a direita, é um meio para mostrar a necessidade de intensificar a luta pelos seus próprios interesses e não para exaltar o espírito moral da classe operária. E, finalmente, como tudo o que não é real, a luta contra a corrupção é pura demagogia eleitoral e é isso o que mais seduz a esquerda pequeno-burguesa que não resiste à tentação de tomar carona na campanha eleitoral da direita contra a poderosa máquina eleitoral do PT.

 

Outro mito que deve ser completamente desfeito é o de que a luta da classe operária é contra o governo. Já a formulação é essencialmente eleitoral e encobre o problema de classe. A classe operária luta contra a burguesia, contra o regime político burguês em seu conjunto e contra os governos burgueses. O antigovernismo pequeno-burguês serve apenas para se alinhar ao partido de oposição burguesa mais forte do momento. A classe operária e seu partido devem lutar, ao mesmo tempo, contra a direita e a esquerda da burguesia, mas não deve confundir os dois. Chávez não é igual a Capriles e Lula não é igual a Serra, Alckmin e FHC. Nós combatemos os movimentos nacionalistas e frente-populistas sempre pela sua incapacidade de combater a direita, pelas suas alianças com a direita, por colocar em prática a política da direita quando esta não é capaz, cobrando deles as posições esquerdistas, em grande parte demagógicas, com as quais pretendem atrelar as massas. Dizer que Lula é igual ou pior que Serra serve apenas para desmoralizar quem diz isso e a própria ideia de independência política em relação ao PT e à frente popular. Se a esquerda revolucionária não combater os ataques da direita contra as pequenas realizações da esquerda burguesa, como irá convencer militantes e o movimento dos trabalhadores que fará grandes reformas através da revolução?

 

A crítica à esquerda burguesa também não é, como assinalamos acima, uma cruzada, mas um instrumento para ajudar as massas a superar as limitações da esquerda burguesa e para organizar um movimento independente.

 

Nossa luta não é imediatamente pela derrubada do governo PT, embora não sejamos responsáveis pela sua continuidade ou não, mas para organizar os trabalhadores e juventude em uma poderosa força independente da esquerda burguesa e da frente popular, capaz de derrotar a direita e de colocar em pauta a luta pelo poder.

 

E agora?

 

O desenvolvimento das manifestações defronta-se com o problema crucial da falta de organização e da falta de uma orientação política e até mesmo reivindicativa clara.

 

Em outras oportunidades, tais movimentos que eram mais coerentes e concentrados, mas não tão amplos, serviram fundamentalmente como um estopim de uma nova etapa de lutas e de desenvolvimento revolucionário da classe operária. Em 1977, meses de intensa agitação estudantil que começaram em S. Paulo e se tornaram nacionais, deram lugar ao início do ascenso operário que liquidou de fato com a ditadura tendo como centro as greves do ABC. Em 1983, após três anos de recessão, para tomar os exemplos que correspondem à atual etapa política, uma manifestação do movimento dos desempregados que invadiu a sede do governo estadual nos primeiros dias do governo do PMDB de Franco Montoro deu lugar a uma semana de quebra-quebras em S. Paulo, para ceder lugar em seguida ao crescimento do movimento grevista, que realizou duas importantes greves gerais e depois à campanha das diretas e, enfim, ao amplo movimento grevista revolucionário de 1985-89. A campanha do Fora Collor, também começada pela juventude estudantil, a partir da campanha política da burguesia na imprensa capitalista, levou à queda de Collor, à manobra da posse de Itamar e a toda a crise que foi fechada com o Plano Real e a eleição de FHC dois anos depois.

 

A crise interna da burguesia é certamente, como fato histórico, o maior estímulo para a explosão inicial das mobilizações populares. Nesse caso, a intensa luta entre os defensores do PT e a direita, uma clivagem no interior do bloco burguês, tem acirrado a disposição dos setores pequeno-burgueses, em primeiro lugar a juventude estudantil, tanto de esquerda, amplamente majoritário, como de direita.

 

Um prognóstico seguro consiste em que, embora a atual onda de mobilização reflua, em função das suas limitações atuais, esse refluxo é um intervalo necessário para a mudança de forma do movimento, necessária para que possa se expandir e consolidar. Seguindo os exemplos anteriores, por analogia, podemos concluir que o movimento reaparecerá na forma de movimentos parciais de setores mais organizados, com reivindicações definidas, como foi o movimento do passe livre, incorporando a insatisfação manifestada amplamente em um movimento objetivo e organizado ou, pelo menos, mais organizado.

 

Para isso, torna-se necessário discutir um programa concreto que ataque os problemas reais das massas e que combata a pseudo-luta contra a corrupção. Contra o crescimento da inflação, luta por aumentos salariais, salário mínimo vital, escala móvel. Contra as demissões, advindas da recessão, redução da jornada, salário desemprego, escala móvel etc. Contra a carestia em geral, reestatização de todos os serviços públicos, controle das empresas. Reforma agrária, luta contra a repressão e em defesa dos direitos democráticos, liberdade sindical, direito de greve etc. Liquidação dos mecanismos antidemocráticos do regime político, fim do senado, câmara única, congresso proporcional, liberdade de organização partidária, eleição do judiciário etc.

 

Este conjunto de reivindicações deve apontar sistematicamente para o fim do monopólio político da burguesia na forma de luta por um governo dos operários, camponeses e do povo, de um governo dos trabalhadores, sem a participação da burguesia, seus partidos e seus dirigentes.

 

Em todo este movimento é preciso sublinhar incansavelmente a crise terminal capitalista e o fato de que a manutenção da propriedade privada é o principal obstáculo à resolução dos problemas do país.

 

Sobre esta base, deverá surgir através das etapas da luta um partido operário amplo, que agrupe os principais sindicatos e militantes operários e da juventude, os movimentos de mulheres, agrários, de negros etc. Para isso, é preciso lutar por uma imprensa independente e denunciar a imprensa capitalista reacionária e golpista. Esse é o sentido geral da luta revolucionária na etapa atual.

23 de abril de 2013

http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/10/201110121715573693.html

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Pepe Escobar: “A trampa Boston-Chechênia do FBI”

22/4/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar
LONDRES – As bombas em Boston foram tiro pela culatra. Disso já não há qualquer dúvida. O que ainda não se sabe é que nível de tiro saiu-lhes pela culatra.
Pode ter sido operação clandestina que deu/saiu totalmente errada. Pode ter sido tiro que saiu pela culatra de ex “combatentes da liberdade” – nesse caso chechenos étnicos – reconvertidos em terra-rists [como Bush pronunciava a palavra terrorists (NTs)]. Pode ter sido tiro saído diretamente pela culatra da política externa dos EUA contra muçulmanos, que só existe para mandá-los para Guantánamo, Abu Ghraib ou Bagram, entregá-los “extraordinariamente” (mas frequentemente) para serem torturados em solo estrangeiro ou para assassiná-los “legalmente”.
O FBI, como se poderia facilmente prever que faria, não admite nenhuma dessas opções. Mantém-se agarrado a um roteiro enroladíssimo, digno desse pessoal mais completamente movido à cocaína. Noites hollywodianas dos anos 1980s: uma dupla de bandidos que “odeiam nossas liberdades”, porque… odeiam.
Como já escrevi, numa espécie de preâmbulo ao que aqui se lê, há buracos de dimensões intergalácticas na história dos irmãos Tsarnaev.Já se sabe – pela mãe dos dois rapazes (vídeo, em inglês, no final do parágrafo) – que o FBI (Federal Bureau of Investigation) seguia o irmão mais velho, Tamerlan, há, no mínimo, cinco anos. Em entrevista posterior a Piers Morgan da CNN, a mãe falou, sim, claramente, sobre “orientações” que o filho recebera.
Simultaneamente, o FBI foi obrigado a admitir que, no início de 2011 aceitou o pedido de “um governo estrangeiro” (expressão-código para “Rússia”) para não perder de vista o mais velho dos irmãos, Tamerlan. Aparentemente foi o que fizeram – e nada encontraram que sugerisse atividade terrorista.
Assim sendo, o que aconteceu depois? Alguém no FBI, dos que têm QI superior a 50, devem ter percebido que, por causa do pedido dos russos, o FBI “descobrira” um precioso “operativo” checheno-americano. E Tamerlan tornou-se informante do FBI. Podia ser tocado como se toca rabeca, para produzir qualquer som – como tantos outros tolos antes dele.
Portanto, se não o afinaram corretamente, pode-se acusar o FBI, com todo o direito, de incompetência devastadora (e não seria a primeira vez). Porque o FBI está dizendo agora que jamais suspeitou de que seu “operativo” estivesse construindo alguma bomba, que desejasse testá-la ou que andasse de bomba da mochila pelas calçadas da Maratona de Boston.
O que o FBI jamais, em tempo algum, dirá é quando monitoraram/ controlaram/ chantagearam Tamerlan pela última vez. Não esqueçamos: trata-se do mesmo FBI que nos ofereceu aquele “plano” tipo “Velozes e Furiosos”, mancomunado com um cartel mexicano para assassinar um embaixador saudita – plano que foi desmascarado e exposto apenas em alguns dias.
Tamerlan, é claro, pode ter dado uma de FBI p’ra cima do FBI (embora, talvez, nem tanto) e, depois de anos de monitoramento/ controle/ chantagem, passou a trabalhar como agente duplo. Ao que se sabe, trocou os EUA pela Rússia por longo período – de janeiro a julho de 2012. Ninguém sabe o que fez nesse período; o FBI adoraria provar que participou de treinamento terrorista tático. Mas, se era de fato “operativo” tão interessante, bem pode ter sido mandado infiltrar-se nos grupos de jihadis chechenos comandados por Doku Umarov no vizinho Daguestão.
Sibel Edmonds
Quanto às relações complexas, cheias de nuances, como são todas as relações muito íntimas, desde os anos 1990s, entre Washington e os terra-rists chechenos – absoluto tabu na imprensa-empresa dos EUA – ninguém precisa ler mais que o interessantíssimo e surpreendente Sibel Edmonds [19/4/2013, USA: The Creator & Sustainer of Chechen Terrorism (EUA: Criador e mantenedor do terrorismo checheno)].  
Sobre o tal exercício
O FBI tem poder suficiente para impor aos EUA e ao planeta qualquer roteiro fantasioso sobre “dois jovens chechenos do mal”. Consideremos então um cenário alternativo crível, para ver a que nos leva.
Em vez de dois sujeitos (estrangeiros) do mal, totalmente americanizados, que repentinamente são inoculados pelo vírus do ódio “contra nossas liberdades” mediante doutrinação jihadista feita principalmente online, vejamos quem realmente se beneficia com o que aconteceu em Boston.
O Boston Globe foi forçado a “fazer desaparecer” a informação sobre um exercício de contraterrorismo – que incluiria cães que farejam bombas – e que aconteceria durante a maratona. O FBI bem pode ter dito ao seu “operativo” Tamerlan que ele participaria do exercício. Tamerlan podia ser sujeito durão, mas seria facilmente chantageado, se sua família fosse ameaçada no caso de ele não cooperar.
Então, entregaram a Tamerlan uma mochila preta com uma falsa bomba de panela-de-pressão e disseram-lhe que a pusesse num local determinado – como um dos procedimentos incluídos no exercício. Nesse ponto, todo o (nosso) cuidado é pouco: não há nenhuma prova conclusiva que autorize a confirmar que se tratasse de simples exercício. Não há como saber se a bomba era falsa ou se estava armada para explodir ou ser explodida.
 
Digamos que Tamerlan, homem durão, e seu irmão, o impressionável Dzhokhar, tenham sido realmente responsáveis (sem o FBI no quadro). Depois de tanto planejamento, com certeza haveria rota de fuga planejada – transporte, passaportes, dinheiro, bilhetes de avião. E nada disso havia. Dzhokhar foi à escola, treinou na academia, enviou mensagens por Twitter.
Não há absolutamente nenhuma testemunha que diga ter visto os irmãos depositarem as bombas. Eles puseram as bombas onde as puseram, porque essa foi a instrução que receberam do FBI. E dali em diante, já ninguém entende mais nada. Roubaram um Mercedes num posto de gasolina e deixaram partir o motorista – depois de dizerem a ele que eram responsáveis pelas bombas da Maratona. Dzhokhar e a Mercedes conseguem sair vivos de tiroteio cerrado, furando uma muralha de policiais – mas, no percurso, o Mercedes passa por cima do corpo de Tamerlan enrolado em explosivos. Dzhokhar deixa uma trilha de sangue. Mas nenhum cachorro seguiu a trilha.
E há o saborosíssimo exercício em cidade sob lei marcial: toda a cidade foi esvaziada e paralisada – o prejuízo gerado por essa operação é incalculável – por causa de um adolescente em fuga pela cidade. Atenção, EUA! A coisa está só começando!
O que é certo é que os irmãos Tsarnaev absolutamente não eram militantes jihadis; só os viciados nos veículos de esgoto de Murdoch algum dia engolirão a ideia de que fossem.
Basta passar os olhos por uma página de jihadistas autênticos, como o Kavkaz Center, muito bem estabelecidos e plenamente representativos do que se conhece como o Emirado Islâmico do Cáucaso, de insurgentes. Ali se fazem boas perguntas. E o Centro Caucasiano desmonta completamente a versão de que os irmãos seriam jihadistas empedernidos.
A [empresa] Craft, que tudo sabe
Poucas empresas paramilitares e respectivas griffes no ocidente industrializado são mais sinistras que The Craft Craft foi responsável pelo exercício de guerra. O símbolo é uma caveira, parecida, até, com O Justiceiro, personagem Marvel. O motto chega a ser tímido, ante o que a empresa faz: “Não importa o que sua mãe diga: a violência resolve”. A imprensa-empresa nos EUA fez simplesmente sumir qualquer vestígio da multidão de empregados-agentes da Craft que estavam em todos os pontos, muitos deles, no local da Maratona. Pode-se falar em um blecaute, pelas empresas-imprensa.
Mas a imprensa independente não se intimidou. Encontram-se fotos, em Natural News, um achado, um perfeito tesouro de fotos e mais fotos que mostram empregados da Craft no local da Maratona, em uniforme completo de combate, mochilas pretas, equipamento tático, portando até detector de radiação. As fotos, portanto, existem. E como reagiu o FBI? Impôs total blecaute. Censura total de imagens, coisa do tipo “nenhuma outra imagem será confirmada” – só imagens que mostrem os irmãos Tsarnaev. A empresa Craft é intocável.
O problema é que tudo que tenha a ver com a empresa Craft nesse cenário é problema.
(1) A invisibilidade da Craft – toda a imprensa-empresa obedecendo como ovelhinhas ao que o FBI ordenou e apagando do noticiário todos os fatos.
(2) A qualidade da expertise “de segurança” – um exército de mercenários ao qual se paga uma fortuna… e os tais hiper treinados “especialistas” armados com o mais pesado armamento high-tech do planeta não conseguem capturar uma dupla de amadores?! E
(3) a sinistra possibilidade de tudo tenha sido operação clandestina executada pela empresa Craft.
Se nos mantivermos fieis à realidade, deixando de lado as histórias em quadrinhos by Marvel, todas as evidências apontam para alguma coisa bem semelhante ao modus operandi da galáxia soturna de franquias da al-Qaeda. Consideradas as provas recolhidas da história e do comportamento dos irmãos – nenhuma atividade passada, nem militar, nem de sabotagem – elas também sugerem que não teriam experiência suficiente para planejar e executar tudo aquilo, sozinhos. Mas pode-se entender sem dificuldade uma operação copiada da al-Qaeda e atribuída a dois rapazes que não teriam como defender-se – algo que, pelo menos em teoria, a empresa Craft poderia facilmente planejar.
Por tudo isso, eis a que nos leva um cenário perfeitamente realista: falsa operação construída por FBI/Craft, a qual:
(1) pode ter dado terrivelmente errado, motivo pelo qual os autores tiveram de encontrar dois bodes expiatórios, no prazo de algumas horas; ou
(2) a sinistra possibilidade de que tudo tenha sido planejado como joguinho de gato-e-rato para produzir exatamente o resultado que produziu – e levar à militarização, agora já quase total, de toda a vida civil nos EUA.
Vale o escrito (em sangue). Estão sumindo os últimos vestígios de Estado de Direito nos EUA – agora que um painel bipartidário de especialistas já descobriu que todos os funcionários em postos de comando do governo George W. Bush estiveram, sem dúvida possível, implicados em torturas; e que a tortura foi prática sistemática, mesmo que jamais tenha conseguido impedir qualquer ato terrorista.
Washington está a um passo de ver-se incluída na lista cintilante de estados como o Egito na era Mubarak, Bahrain e Uganda. Como o coronelão-senador Lindsay Graham já declarou, “a pátria é o campo de batalha”. E você, leitor, é “combatente inimigo”. Se decidirmos que é.


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27 de março de 2013

As aventuras do Sapo Gonzalo contra Yoani Sánchez

26 de fevereiro de 2013

 

Publicado em 08/04/2011 | 16 Comentários

Por Luiz Bernardo Pericás.

Estava tomando uma cerveja no Bar do Joaquim, uma pocilga no centro da cidade, quando seu Gonzalo entrou no recinto, soltando fumaça pelas ventas, como de costume.  Deixem-me aqui apresentar meu amigo. Seu Gonzalo era um sapo argentino. Grandes olheiras, barba por fazer, cabelos grisalhos, fumava sem parar um cigarro sem filtro.  Parecia sempre contrariado. Militante de esquerda, havia fugido de seu país durante a ditadura militar, saltando através das fronteiras de todas as nações sul-americanas com suas longas e agéis pernas de batráquio acrobata.

Não, Gonzalo não era aquele tipo de untanho que temos por aqui. Nos idos da juventude, era mais rápido e ágil que o Maluf fugindo do fisco. Com os anos, contudo, se cansou.  Mas nunca deixou o inconformismo de lado. Pois Gonzalo acabou pulando tanto de um lado ao outro que foi dar em Paris, onde viveu durante décadas, tragando maços e maços inteiros de Gitanes fumarentos, lendo a obra completa de Sartre, discutindo política com rãs européias e ouvindo Charlie Garcia na vitrola, para lembrar de casa. Adorava cinema italiano, e foi falando dos filmes de Fellini e Antonioni, com uma taça de vinho na mão, que conseguiu conquistar dezenas de girinos, estudantes da Sorbonne. Até que um dia teve um estalo e resolveu, sabe-se lá por quê, vir para cá, para nossa República do Repolho, paraíso dos trópicos e do turismo sexual. Quem sabe os pôsteres da ensolarada Copacabana nas agências de viagem tenham inspirado meu colega bufonídeo.

Pois este era seu Gonzalo, que puxava a cadeira e sentava-se diante de mim.  Certamente já não era o mesmo de antigamente. Artrite e artrose, reumatismo em todo o corpo. O nervo ciático dava fisgadas. Mesmo que enferrujado, continuava um espírito combativo. Parecia mais verde do que de costume. E estava irritado porque havia sido obrigado pelo botequineiro a se livrar do palheiro que trazia aceso entre os lábios. Era movido a nicotina.

“Essas novas leis contra o fumo em locais fechados!”

Resmungava, mas de nada adiantava.

Veio logo me perguntando, indignado, se eu ouvira a última notícia sobre uma tal Yoani Sánchez, suposta “blogueira” cubana. Sabia de quem ele estava falando, mas mesmo assim, pedi para que me contasse a novidade.

“Comandante…”

Era assim que ele costumava me chamar, talvez por hábito adquirido quando participava de células clandestinas na década de setenta. Mas eu nunca havia sido nem mesmo síndico de meu prédio. E não conseguia sequer comandar meu filho e a patroa, lá em  casa… Mas o sapo Gonzalo, com suas pernas compridas, cruzadas, insistia no qualificativo.

“Comandante, você viu o novo prêmio que essa tal de Yoani Sánchez acabou de receber?”

Confesso que ainda não lera a notícia bombástica, noticiada no Miami Herald e jornais similares. Dei de ombros.

“Não viu? Ela ganhou o Prêmio Internacional das Mulheres de Coragem, do governo dos Estados Unidos!”

Isso era de se esperar. A tal “blogueira” já havia recebido os prêmios Ortega y Gasset de Jornalismo Digital, Bitácoras.com, The Bob’s (vai saber o que isso, talvez um sanduíche) e Marie Moors Cabot (da Universidade de Colúmbia). Foi eleita pela revista Time como uma das cem figuras mais influentes do mundo… Ela e George Bush… O mais surrealista é que também foi incluída pela revista Foreign Policy entre os dez mais importantes intelectuais do planeta em 2008. Ora, façam-me o favor! Só faltava agora o selo de qualidade da Casa Branca, e ela o conseguiu. Como não pôde estar presente na entrega do prêmio, foi galardonada in absentia, com direito até a discurso da própria Hillary Clinton.

“Ninguém me convence que essa ‘blogueira’ não está na folha de pagamentos de Washington”, comentou o camarada anfíbio, coçando a pele viscosa.

Foi nessa hora que um arapaçu, sentado à mesa ao lado, levantou-se indignado.  O pica-pau de cabeça rubra vociferou:

“Yoani é um símbolo da luta pela liberdade de expressão!”

Bicava, bicava, bicava…

Dirigente de um micropartido de ultraesquerda, o arapaçu bradava que Cuba era uma ditadura. Sua organização já havia denunciado as atrocidades cometidas na ilha caribenha. Ele tinha muitos amigos lá, homens como Zapata e Fariñas…

O sapo Gonzalo deu um pulo, imediatamente. Parecia voltar à juventude. Com o impulso sensacional, digno dos maiores cururus da Bruzundaga, foi parar na cabeça do pássaro empedernido.

“Não me venha falar de dois marginais, bandidos comuns, seu boludo!”

O arapaçu foi pego de surpresa. Gaguejava. Afinal, andava estressado nos últimos tempos, já que havia participado, recentemente, da expulsão de duas pulgas, membros históricos de seu partido. O argumento é que elas ocupavam espaço demais na diminuta e apertada sede nacional da agremiação… O arapaçu sabia que aquele havia sido mais um racha, o de número 164, desde a fundação da organização, dois anos antes.  Naquele momento, havia mais letras na sigla do partido do que o número de militantes em suas fileiras.

O fato é que o pica-pau podia discutir qualquer coisa e até chegar a um entendimento com o interlocutor. Mas a defesa do que ele chamava de “liberdades” em Cuba, isso ele não abriria mão: era intransigente! Yoani, a heroína da liberdade! Ora bolas… Mesmo que suas opiniões fossem exatamente as mesmas do governo norte-americano, continuaria a dizer para quem quisesse ouvir que era “anti-imperialista”.

Foi no meio da discussão que outro personagem resolveu se meter. O Doutor Vladomiro era um sagui semi-calvo, com barbicha ruiva e óculos da moda. Professor da Universidade de São Priápico (a maior instituição de ensino superior da República do Repolho), escrevia para jornais de grande circulação e certa vez, durante uma conferência, ficara de joelhos, quase chorando de emoção, diante de seu maior ídolo, o filósofo esloveno Slavoj Žižek.  Não é que aquele guigó também veio em defesa de Yoani? Dá para imaginar a cena em seguida? Vladomiro era marxista pós-moderno e também não admitia “arbitrariedades” do regime. Conhecia Cuba de orelhadas, mas insistia em sua postura de “homem de esquerda”. Falava sobre Cuba com desenvoltura, mesmo sem nunca ter se informado acerca das sutilezas do processo revolucionário naquele país.

Gonzalo tinha vontade de lançar sua língua quilométrica em volta do pescoço do primata (do mesmo jeito que fazia quando queria pegar moscas), mas pensou melhor, lembrou-se que todos têm o direito a dar opinião e resolveu ouvir as lamúrias do saciólogo (ele estudava o comportamento dos sacis, principalmente um em particular, aquele retratado na obra de Monteiro Lobato). Vladomiro falou, falou e falou, enquanto seu rabo se movia freneticamente. Mas, como a maioria dos detratores da ilha, repetiu frases feitas, retiradas dos editoriais de revistas semanais e dos telejornais diários. Tudo, é claro, com pitadas de esquerdismo, aqui e ali.

O discurso por certo incomodava. Só depois de dez minutos, porém, é que Gonzalo e eu percebemos o que ainda não havíamos notado. Tanto o pica-pau como o sagui traziam, colados aos ouvidos, aparelhos de surdez (obviamente, adaptados às suas condições específicas dentro do mundo animal). Ao que tudo indicava, haviam desligado os aparelhos tão logo iniciaram seus discursos “democráticos”. Quem sabe por isso falavam tão alto…

O botequineiro pediu para que se calassem, estavam incomodando os clientes, criando confusão. Mas a dupla não parava, e de dedo em riste, gritava frases anticastristas. Logo em seguida, os dois iriam insistir nos valores do que acreditavam ser o “verdadeiro” socialismo que preconizavam. Só não sabiam explicar onde havia essa modalidade, nem como se chegaria a ela… Engraçado é que o “socialismo” dessa gente parecia muito com a vida na Flórida, a poucos quilômetros da ilha…

Gonzalo sentou-se e deu mais um gole na cerveja. Quando o pica-pau e o saguizinho pouca telha perceberam que haviam perdido a platéia, religaram os aparelhos nos ouvidos e retornaram às suas mesas.

Foi aí que Gonzalo, que sempre defendera Cuba, decidiu falar. Mas só para mim. Pelo menos, essa era sua intenção inicial. Ele disse:

“Vou lhe contar, pibe, um pouco sobre essa senhorita, a tal Yoani Sánchez. Ela critica todos os dias o governo de seu país, mas vive em coquetéis de embaixadas, é amiga de estrangeiros e recebe dinheiro dos gringos. É sempre vista com seu lap top nos hotéis mais caros de Habana Vieja, tomando seu expresso ou cappuccino. Diz que não tem liberdade de expressão, mas nunca teve problemas em divulgar suas mensagens insidiosas pela internet. Apóia os piores criminosos do país, aqueles que se disfarçam de ‘rebeldes’ e ‘humanistas’. Mas, como já ficou provado, são, em sua grande maioria, homens condenados por roubos, abusos contra mulheres, estupros, violência doméstica e assassinatos, e que usam o ‘escudo’ de ONGs internacionais de defesa dos direitos humanos para fazer o serviço contra a revolução e todas suas conquistas. Ganham visibilidade na Europa, conseguem angariar apoios e disseminar o ódio e a contrainformação nos meios de imprensa. Yoani é quem mais tem trabalhado para denegrir e esculhambar o sistema socialista. Mas a ‘blogueira’ não está escondida nem detida numa prisão escura. Quem quiser encontrá-la, sabe seu endereço. Anda livremente pelas ruas da capital. Não é molestada por ninguém. Diz que a polícia a persegue. Mas está solta e desimpedida. Em suas entrevistas, defende o fim do regime e a entrada total dos Estados Unidos em todas as esferas da vida do país. Afinal, essa ‘intelectual’ (pobres intelectuais) diz que os Estados Unidos e Cuba têm muito em comum: ambos povos adoram beisebol! Para ela, os cubanos da Flórida não são inimigos; pelo contrário, ‘Y’ os convidaria de braços abertos a entrar no país. Essa ‘blogueira’ que tanto diz querer sair de Cuba, viveu na Suíça, onde poderia estar até hoje. Mas não aguentou. Ou não quis. Preferiu voltar ao Caribe. Por que não ficou por lá? Por que continua a dizer que é perseguida? A tal Yoani acha que o caso do terrorista Posada Carrilles (responsável pelo atentado que matou dezenas e dezenas de pessoas num avião cubano) não é importante e não interessa ao povo comum das ruas. Já os cinco patriotas, encarcerados em prisões norte-americanas, esses provavelmente eram espiões infiltrados pelo serviço secreto da ilha. Tão intelectualizada é essa ‘jovem’ que não sabia sequer que Washington já havia patrocinado uma invasão a Cuba, na Baía dos Porcos. Mudanças no governo de Cuba? Por que não? A Casa Branca quer que isso ocorra, e ela também; foi o que respondeu certa vez, em sintonia com a Administração do ‘Colosso do Norte’. Para Yoani, o regime Batista era uma ditadura, mas, teoricamente, era melhor do que o governo de Castro. Afinal de contas, naquela época, havia liberdade de imprensa! Para completar, ‘Y’ acha que não há problema de os Estados Unidos financiarem grupos de oposição em nenhum lugar do mundo. Isso não representaria qualquer ingerência externa nos assuntos nacionais. Pois se você quiser saber, mi querido, ouça o que esse velho sapo argentino tem a lhe dizer. Procure ler uma entrevista esclarecedora que Yoani concedeu ao pesquisador francês Salim Lamrani e que foi publicada no jornal Rebelión. A entrevista é tão impressionante e esclarecedora que vale a pena ser lida. Fiquemos sempre do lado da revolução!”

Quando terminava de falar, Gonzalo já elevara o tom e agora brandia em voz alta. Suas mãos tremiam. Coaxava para todos ouvissem. Deu mais um gole na cerveja, já morna, e completou com “Viva Cuba! E viva Fidel!”

Subitamente, escutamos um forte aplauso. O botequineiro; um  garoto, engraxate, que entrava no local; e um porteiro do prédio vizinho, tomando um café forte, ao balcão, batiam palmas, entusiasmados. Eles haviam prestado atenção a tudo, e concordado com o batráquio. Com um sorriso nos lábios, o sapo pegou seu copo e levantou um brinde aos novos amigos.

Todos os animais mencionados nesta história são personagens de ficção (com exceção de Yoani).  O autor recebeu autorização do IBAMA e da V Internacional de Hugo Chávez para utilizar os animais no presente texto.

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras

16 de fevereiro de 2013

 

bilhões,indicaestudo

 

CIDADANIA

Economista e aluno do Insper pesquisaram efeitos do projeto na economia dos municípios entre 2004 e 2006

NÚMEROS

Fernando Dantas

RIO

A expansão do valor total dos

benefícios pagos pelo Bolsa-Família

entre 2005 e 2006, de R$

1,8 bilhão, provocou um crescimento

adicional do PIB de R$

43,1 bilhões, e receitas adicionais

de impostos de R$ 12,6 bilhões.

Esse ganho tributário é

70% maior do que o total de benefíciospagospeloBolsa-

Família

em 2006, que foi de R$ 7,5

bilhões.

Essas estimativas estão num

estudorecémconcluídodoseconomistas

Naercio Aquino Menezes

Filho, coordenador do

Centro de Políticas Públicas

(CPP) do Instituto de Ensino e

Pesquisa (Insper), antigo Ibmec-

SãoPaulo, ede PauloHenrique

Landim Junior, aluno da

graduação do Insper.

Oobjetivo do trabalho era investigar

os efeitos do Bolsa-Família

– que hoje atinge 12,9 milhões

de famílias – na economia

dos municípios. Os pesquisadoresinvestigaram5,5milmunicípios

nos anos de 2004, 2005 e

2006. Os dados utilizados foramo

PIB,a população e a arrecadaçãodetributosnosmunicípios,

do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE);

e os desembolsos do Bolsa-Família,

do Ministério do Desenvolvimento

Social (MDS).

Apartirdessabase,Menezes

e Landim empregaram métodos

estatísticos para calcular o

impacto na economia municipal

de aumentos dos repasses

do programa per capita – os repasses

divididos pela populaçãodomunicípio(

enãopelo número

de beneficiários). A conclusão

foi de que um aumento

de10%norepassemédiopercapita

do Bolsa-Família leva a

uma ampliação de 0,6% no PIB

municipal no ano em que ocorre

a expansão e no seguinte.

“O impacto pode parecer pequeno,

mas quando analisamos

os efeitos levando em conta os

númerosabsolutosdoPIB,ele é

bem grande”, diz Menezes.

AmagnitudedoefeitodoBolsa-

Família no PIB ficou a clara

quando os pesquisadores fizeram

o que chamaram de “análise

de custo-benefício”, tomando

os anos de 2005 e 2006. Entre

os dois períodos, os repassesdoprogramasubiramdeR$

5,7 bilhões para R$ 7,5 bilhões,

numsaltodeR$1,8 bilhão,oude

30,34%.Ovalormédiodorepasse

em 2006 foi de R$ 61,97 por

família, e o porcentual da população

beneficiada foi de 36,4%.

Considerando-se a relação

de0,6%amaisdePIBparacada

10% a mais de Bolsa-Família, o

aumentode30,34%em2006significa

um ganho no conjunto

dosmunicípios – isto é,doPaís–

de 1,82%. Aplicado ao PIB de

2006deR$2,37 trilhões, chegase

ao PIB adicional de R$ 43,1

bilhões.Dessaforma,paracada

R$ 0,04 de Bolsa-Família a

mais,oganhodePIBfoideR$1.

Menezes fez cálculos adicionais,

levandoemcontaqueadistribuição

do aumento do Bolsa-

Família de 2005 para 2006 não

foi homogênea entre todos os

municípios brasileiros, e obteve

resultados muito parecidos.

Elediz queaquele efeito explica-

se pelo chamado “multiplicador

keynesiano”, que faz com

que um gasto adicional circule

pela economia – de quem paga

paraquemrecebe–váriasvezes,

aumentando a demanda bem

mais do que o seu valor inicial.

A análise dos dois economistas

permitiu avaliar também o

impactodosaumentosderepasses

do Bolsa-Família nos diferentessetoresdaeconomiamunicipal.

Omaiorefeitofoiencontrado

na indústria – para cada

10% a mais de Bolsa-Família, o

PIB industrial aumenta 0,81%.

Nos serviços, o impacto foi de

0,19%, enquanto na agricultura

não foi registrado efeito significativo.

“Épossívelqueaindústriatenhasidomaisafetadaporcausa

do aumento de consumo de

energia elétrica, água, esgoto e

gás das famílias pobres e extremamente

pobres que recebem

Bolsa-Família”, diz Menezes.

No caso da arrecadação municipal,

o estudo indica que um

aumento de 10% nos repasses

leva a um aumento médio de

1,36%. Levando-se em conta o

total de impostos gerados nos

municípios em 2006, de R$

304,7 bilhões, concluiu-se que o

aumento de 30,34% do Bolsa-

Família provocou uma alta de

4,1% na arrecadação, ouR$12,6

bilhões.

 

 

 

R$ 7,5

 

bilhões

foi o total gasto com o Bolsa-Família

em 2006

 

R$ 1,8

 

bilhão

refere-se à parcela que superou o

gasto de 2005

 

R$ 43

 

bilhões

foi o PIB gerado pelo gasto adicional

com o Bolsa-Família em 2006

 

R$12,6

 

bilhões

foi a receita adicional de impostos

com o programa em 2006

 

‘Impacto é grande,

 

quando se pensa no

 

valor do PIB”, diz

 

pesquisador

 

SEXTA-FEIRA, 16 DE OUTUBRO DE 2009

 

NACIONAL A9

O ESTADO DE S. PAULO

 

 

NACIONAL A9

O fator Marina

15 de fevereiro de 2013

O fator Marina.

O fator Marina

15/02/2013Opine!

Amanhã, sábado, é um grande dia para Marina Silva.

O seu novo partido, cujo nome ainda não está fechado, apenas sabe-se que será Rede-alguma-coisa, organiza um evento em Brasília para apresentar-se oficialmente à nação. Agora falta recolher 500 mil assinaturas e criar a legenda.

Há uma grande boa vontade na mídia em relação à Marina Silva. A mídia corporativa, com seus pendores de oposição, vê na ex-ministra – com razão – uma aliada na luta para apear os petistas do Planalto.

Ninguém deve subestimar Marina Silva. Em 2010, ela agregou uma quantidade impressionante, e eclética, de eleitores independentes: evangélicos, jovens de classe média, votos de protesto, gente interessada no meio ambiente, antipetistas não-tucanos.

Outro erro, porém, seria superestimá-la. O eleitor evangélico, por exemplo, ou mesmo católico, não vê mais razões para suspeitar da presidente, que trabalhou com muita prudência para desfazer a rejeição desses setores a sua pessoa. Dilma perdeu os chifres e o rabo. Não será mais possível usar o desconhecimento do eleitor sobre a ex-guerrilheira para assustá-lo com profecias diabólicas. O eleitor agora conhece a presidenta. Conhece os problemas de seu governo e seus defeitos pessoais. A aprovação de Dilma é altíssima, ponto final.

Perdido o eleitorado religioso, o desafio de Marina será captar o voto jovem, o de “protesto”, e os udenistas. Estes setores, sobretudo os dois últimos, estarão também na mira de Aécio Neves, que terá seguramente um discursto bem mais assertivo neste sentido, além de uma quantidade de recursos infinitamente superior.

Sobrará para Marina Silva o eleitor jovem de classe média, anti-governista e udenista por natureza. Seu principal adversário, neste segmento, será um eventual candidato do PSOL. O sucesso de Marina Silva, portanto, estará condicionado à habilidade para costurar uma articulação, mesmo que tácita, com a ultra-esquerda de oposição. Mas haverá, também aí, um problema grave: os financiadores de Marina são, principalmente, ricaços “sustentáveis”, como o cineasta Fernando Meirelles, o dono da Natura, Luiz Seabara, e a herdeira do Itaú, Maria Alice Setúbal. Com tais aliados, será uma operação delicada articular-se com setores socialistas radicais.

Hoje foi publicada, no Globo, com grande destaque, uma reportagem sobre os primeiros desafios do novo partido de Marina. Segundo a matéria, a presidenciável estaria tendo problemas para atrair políticos tradicionais, em função das regras “inusitadas” sugeridas para a legenda. São elas: limite de até 16 anos para o exercício do mandato parlamentar; veto a doações de empresas “não-sustentáveis”; cota para candidatos “avulsos”.

Algumas dessas regras, na minha opinião, são francamente antidemocráticas. Outras, simplesmente carolas. Impor um limite de 16 anos, por exemplo, pode até soar bonito, por estimular a renovação política, mas esse é o tipo de mudança que deveria ser votado numa reforma política, para valer para todos os partidos. Não faz sentido uma legenda mutilar, unilateralmente, um direito que os parlamentares de todas as outras legendas possuirão, de oferecer ao eleitor, e não à uma regra partidária, a decisão de renovar ou não o seu mandato.

Quanto às doações, vale o mesmo raciocínio. Uma legenda que pretende disputar, à vera, o poder, tem de disputar com outros partidos em condições iguais. Regras de financiamento tem de valer para todos. A posição da nova legenda seria mais construtiva se deixasse claro, desde já, que reforma política deseja para o Brasil. Além do mais, entre as empresas que não poderiam doar ao novo partido, estão as fabricantes de bebidas alcóolicas. Gostaria de saber qual o sentido dessa proibição a não ser um preconceito carola contra o uso do álcool. Considerando que o partido aceitará doações de empreiteira, a jogada contra fabricantes de cerveja ou cachaça – que aliás, segundo consta, não são grandes doadoras – me parece apenas demagógica e marketeira.

A parte mais curiosa do novo partido de Marina, todavia, é mesmo a sua disposição de abrir uma (não pequena) cota para candidatos avulsos, sem comprometimento com as bandeiras da legenda. Na minha humilde opinião, é uma proposta absolutamente antidemocrática, quase golpista, perigosíssima, porque lançará no Congresso indivíduos absolutamente livres para se venderem a qualquer tipo de lobby. A proposta é o corolário último da campanha de despolitização e criminalização da política promovida pela mídia. Um partido, com todos os seus defeitos, é um colegiado onde os parlamentares precisam discutir duas ideias antes de apresentá-las na casa legislativa. Livres desse “estorvo”, que aliás, já é quase nulo (mas existe, em tese), um parlamentar será um radical livre que participará de uma votação sem o mínimo compromisso com sua legenda, agregando um fator de instabilidade extremamente nocivo a governabilidade de um país. Conviver com as instabilidades, atrasos e surpresas naturais de uma democracia já é algo extremamente delicado, quando se pensa, por exemplo, no país que mais cresce no mundo, como a China; mas vale a pena em virtude do atributo mais importante para o mundo ocidental, a liberdade. Não é racional, porém, produzir mais um fator de instabilidade, pondo em risco a credibilidade e o sucesso dos regimes democráticos, criando um legislativo coalhado de representantes sem qualquer compromisso partidário, ou seja, cuja atuação não passará pelo filtro estabilizador dos acordos entre as legendas e o Executivo.

*

Meu post de ontem, sobre Eduardo Campos, foi razoavelmente discutido nas redes, e acho que vale a pena fazer alguns esclarecimentos.

Campos dificilmente será “inimigo” de Dilma Rousseff e Lula. Seria uma contradição, após defender por oito anos as gestões petistas, e participar delas. Não me parece impossível que haja uma jogada ensaiada entre o próprio Campos e Dilma, com objetivo de prender a atenção da mídia aos círculos governistas. E mesmo que não haja, o resultado é o mesmo. A entrada de Campos meio que blinda o governo Dilma contra a verdadeira oposição, representada pelo PSDB. As críticas de Campos ao PMDB fazem parte dessa estratégia. Para Campos, mesmo que em 2014 acabe não sendo candidato, vale a pena posar de candidato virtual agora, para projetar seu nome.

Essa é uma teoria. Uma outra hipótese seria que Campos viria sim como um agente da oposição, aliado da mídia, PSDB e Marina Silva. Quer dizer, isso num segundo turno. No primeiro turno, Campos viria apenas com apoio de alguns partidos desgarrados da base aliada, como PDT e PR.

Mesmo assim, mesmo que isso represente um risco para a situação, e uma luta mais dura para o PT, acho que a entrada de Campos seria benéfica para o jogo democrático, enriquecendo o debate político-eleitoral. Teríamos mais pluralidade de posições, mais ideias na mesa.

Ou não?

*

Um comentarista no blog do Nassif, Douglas da Mata, fez algumas observações bastante inteligentes sobre o meu post, que foi publicado por lá. Achei que valem a pena serem publicadas aqui:

O futuro é opaco, como alguém já disse. Outros dizem que toda vez que medimos algo, o transformamos.

A mais lógica das obviedades, que como tal, poucos enxergam.

Não há como determinar quais são as jogadas da disputa. Sabemos por ouvir dizer: da mídia, e do que vaza pelos próprios interessados, etc.

Mas ainda assim, há algumas pistas sobre as quais poderemos nos debruçar:

01- Não há o menor sintoma de que Dilma tenha perdido o controle de sua articulação política, sua influência e trânsito junto aos parlamentares e dos conflitos dentro desta base aliada.

02- Nenhum presidente que se preze, manipula o tabuleiro com uma só qualidade de peças: logo, Dilma morde a PGR com o PMDB, e assopra com Eduardo Campos. Advinha que é a árbitra deste conflito que ameaça o pescoço do Gurgel? Pois bem, ela!

03- De sua distância segura, argumenta que é um problema dos partidos alilados em relação a PGR, e não de governo!

04- O estimulo ao enfrentamento ao PMDB pelo PSB nada mais é que um aviso ao PMDB: vocês não são a última bolacha do pacote! E pode funcionar com sinal trocado!

05- De quebra, este mis-un-scéne coloca em parafuso as estratégias da oposição, na medida que um importante interlocutor governista toma a bandeira anti-PMDB nas mãos. Uma jogada de efeito, e que surtirá muito efeito nas negociações que vêm por aí.

Eduardo Campos sabe da inviabilidade de sua candidatura, e só a colocará na rua com anuência da presidenta, nunca contra ela.

Sabe que não vence sem o PMDB, inclusive!

E tudo o que o PMDB quer é que ele dê motivo para que seu espaço no governo seja reduzido e a vice caia no colo do PMDB, novamente.

Li uma resenha do filme chileno No, recentemente, e creio que já citei ela aqui: o publicitário, personagem principal do filme, traz para a cena uma premissa básica que contraria o colorário de teses para consubstanciar o discurso da campanha, mas que, na opinião dele, nunca seriam captadas pelo senso comum: para o publicitário, as pessoas mudam por medo ou esperança.

É isto.

Não há no cenário que se avizinha nada que faça a população sentir medo de Dilma, Lula ou PT.

Não há na oposição (ou em Campos) nenhum sentimento de esperança a ser explorado.

Ainda que a economia degringole, e isto é muito difícil, é a percepção de que Dilma é capaz de cuidar de todos e resolver os problemas(esperança) que a coloca como favorita.

Enquanto resta a oposição o medo da população de que eles estraguem tudo de bom que foi feito até agora, ainda mais se houver uma ameaça real a estas conquistas.

Quando vejo Eduardo Campos, me recordo muito do ex-governador do nosso estado, RJ, hoje deputado e líder do PR, anthony garotinho, ou como chamamos por aqui, napoleão da lapa(bairro onde nasceu em Campos dos Goytacazes).

Tinha uma aliança alinhavada com o PT, via Zé Dirceu, um projeto estratégico, que incluiu Bené como vice, e uma plataforma que o lançaria como vice de Lula, ou como nome de peso na futura aliança de 2002, para colocá-lo como alternativa de poder dentro desta coalisão.

Pois bem, napoleão da lapa quis invadir a Rússia sem combinar com os russos e o inverno, teve 15 milhões de votos para presidente, e quase sumiu do mapa político nacional.

Está confinado para sempre a chefe de olligarquia regional.

Mas eu acredito que Eduardo Campos não é tão idiota, e nem tão apressado. Mas se for, azar o dele.

Carta Aberta a Arnaldo Jabor

18 de janeiro de 2013

27 de Outubro de 2006 – 22h54        

Em carta aberta, jornalista desmascara Arnaldo Jabor

Leia abaixo a carta que o jornalista Mauro Carrara escreveu a Arnaldo Jabor, desmascarando os artifícios e a superficialidade do ultradireitista comentarista político da TV Globo.

Carta Aberta a Arnaldo Jabor

 

Por Mauro Carrara

Quase perfeitíssimo truão,

Primeiramente, atente ao substantivo, e não desconfie de insulto. Os bobos da corte são, historicamente, mais que promotores de fuzarca ou desvalidos a serviço do entretenimento. Os realmente talentosos urdiam na teia das anedotas a crítica a seus senhores monarcas, traduzindo pela ironia a bronca popular.

 

Era o caso do ácido e desengonçado Triboulet, vosso patrono, uma espécie de grilo falante capaz de estimular as consciências de Luís XII e Francisco I. Tantos outros venceram no ofício, como o impagável Cristobal de Pernia, uma espécie de conselheiro extra-oficial de Felipe IV. 

Neste Brasil da pós-modernidade globalizante, el rei Dom Fernando Henrique Cardoso reviveu a bufonaria. No entanto, empregou-a de modo diverso, quase sempre como dissimulação hilariante para desviar atenções de sua ética de conveniência mercantil, tão bem definida por Dom José A. Gianotti, seu filósofo e encanador.

O ex-monarca utilizou ainda sua trupe de falastrões para promover a alienante festa pública sugerida por Maquiavel.  Portanto, nunca é exagero te parabenizar pelo empenho profissional.  Há anos, na ribalta televisiva, te devotas a divertir e iludir os ”psites do sofá”, mesmo depois que o tiranete a quem servias foi apeado do trono. Sempre diligente, conclamas e incitas, rebolando patranhas tal qual histriônico cabo de esquadra do restauracionismo.

Recentemente, contudo, causou-me espanto tua fúria salivante para edulcorar a participação do embusteiro Geraldo Alckmin no embate contra o grisalho herói de todos os sertões.

Como é próprio de teu ofício, fizeste rir ao embaralhar significados, ao abusar das hipérboles, ao exceder-se nos adjetivos impróprios, ao viajar na maionese das idéias desconexas.

No entanto, truão Jabor, prosperou aqui a dúvida. Que quiseste dizer com o clichê ”choque de capitalismo”? Seria referência ao rombo de R$ 1,2 bilhão legado pelo embusteiro alquimista ao ressabiado governador Lembo? Ou seria apenas ironia herdada de teus predecessores, na profecia zombeteira de um novo ”que comam brioches”?

Destacam-se também, como enigmas, tuas dupletas acres de escassa teoria. São os casos de ”socialismo degradado”, ”populismo estatista” e ”getulismo tardio”. Eita, nóis! Que essas vigarices binárias nos viessem, ao menos, com sal de fruta. Né? Ora, de qual ”socialismo” tratas? Será que resolveste, no supletivo dos sexagenários, estudar a industrial cultural e as idéias de Adorno? Hum… Pouco provável.

No que tange ao termo ”populismo”, arrisco uma resposta. Tu o compraste na escribaria de ordenança dos novos donatários. É coisa do bazar de tolices de Civita e Frias Filho. Acertei? Diga aí…

Mas o que queres dizer com ”getulismo”? Pelo que percebi, escapa-te o fenômeno à compreensão histórica. Tratas daquele do Departamento de Imprensa e Propaganda?  Ou te referes àquele das necessárias justiças trabalhistas?

Outros exageros me encafifaram em tua anedota de encomenda. Tratas lisergicamente de um São Paulo ”rico”, como se construído dos empenhos da malta quatrocentona. Em teus seminários de apedeuta, desapareceu o povo. Evaporaram-se João Ramalho, Bartira, Tibiriçá, Anchieta, tantos mamelucos arabizados, tantos avós europeus aqui remixados, tantos irmãos nordestinos que ergueram nossos arranha-céus. Teu São Paulo mítico, tristemente, não admite a antropofagia.

E tem mais… Em tua pregação, o embusteiro Alckmin surge como legítimo herdeiro da alva elite construtora do progresso. Nesse delírio pós-positivista e lombrosiano, não há rastro d a gestão criminosa dos privateiros tucanos, dos sonegadores dasluzeiros, dos pedageiros corruptos e dos sócios do marcolismo.  Não te rendeste ao excesso? Ai, ai, ai…

Agitando guizos, executas tua prestidigitação. Empregas, em simultâneo, o sapato pontudo para alojar sob o tapete o sacrifício juvenil na Febem, as nove centenas de contratos irregulares e o estupendo assalto ao tesouro da gente bandeirante. Não exageraste? És bufão ou advogado, truão Jabor?

Entre tuas deformações, tão valiosas ao ofício, suponho até mesmo a cegueira de um olho. Ignoras o júbilo de milhões de vassalos não mais famintos, agora metidos a escrever o próprio nome. Vê, quanto atrevimento! Tampouco registras a voz de ameríndios e afro-descendentes, agora perigosamente mais próximos de ti, a tomar lugar nos bancos da universidades. Não enxergas a energia elétrica nos grotões nem o canto de esperança dos humildes da terra, fortalecidos em cooperativas de produção.

Depois, qual demiurgo de botequim, dizes que o nasolongo Alckmin é ”incisivo”, enquanto o outro te parece ”evasivo”. Ladino que és, julgas os combatentes pelo aspecto cênico e não pela natureza das idéias. No caso do embusteiro alquimista, excedes ao elogiar o espantalho bélico, aplicadíssimo ao método de stanislavskiano. Ora, magnífico truão, todos vimos que o herói de todos os sertões é adepto de outra técnica. Pisa o palco de Brecht, revelando-se como realmente é, antes que se mistifique no papel de fundeiro de microfone.

Cantaste, portanto, a vitória do ”limpinho”, do ”sem barba”, do malcriado que imita Tyson. Como líder de torcida, vibraste na platéia, tuas pernas flácidas saltitando de contentamento, as mãos agitando invisíveis fitas coloridas. Ah, mas perdeste a razão…

Depois, destilaste teu parvo sarcasmo sobre o ”povo”, sobre a ”mãe analfabeta” do operário e sobre os ”pobres”, em suma, sobre esses todos do ”lado de cá”. Na piada rancorosa, revelaste um desprezo moldado para a auto-proteção.

Sabes o quanto é doloroso viver deste lado da linha, no território dos anônimos, dos que sofrem e trabalham de verdade.

Se há dialética nesta missiva, agrego teus motivos. Sabes o valor de uma adoção real, ainda que precises caminhar de quatro, atado à coleirinha de el rei. Sabes o quanto é estratégica essa assepsia, esse descontato com o ímpio das ruas, dos campos e das construções.

Assim, me permito uma visita a teu passado. Tua obra ”séria” resultou, caro truão, em enorme fracasso. E, disso, bem sabes. Por um tempo, tuas ventosas de sanguessuga agarraram algumas tetas públicas. Desse modo, pudeste alimentar teus espetáculos de terceira categoria, ainda que fizessem rir quando a intenção era pretensiosamente induzir à reflexão.

Incerto dia, pobre de ti, todo o oportunismo de parasita foi castigado, de modo que te encontraste novamente vadio, mergulhado na mais profunda frustração. Naquele momento, julgo, buscaste inspiração em Triboulet…

Na Vênus Platinada do decrépito Marinho, iniciaste tua pândega panfletária, calcada na manipulação marota de cacos de idéias. Nada por inteiro. Coerente para quem, por natureza, carece de  integridade.

Esse flashback permite, portanto, compreender melhor o roteiro cínico. Tanto faz se teu senhor largou o reino às escuras, se destacou piratas para pilhar o patrimônio público, se foi incompetente até mesmo para empreender no capitalismo que tanto celebras. Às tuas costas, no tempo, estende-se a terra arrasada pela peste do egoísmo, habitada de fariseus neoliberais e de peruas ridículas e mesquinhas. Por meio da ruidosa retórica de falso indignado, desvias o olhar público dessa paisagem da tragédia.

Para seguir o ato farsesco, fazes descer o pano da falácia sinistra do golpismo lacerdista, da distorção, da maledicência e da espetacularização do rito inquisitório. Simulas ver aqui, em alto grau, o que ignoras ali. Na telinha da ”Grobo”, distribui sofismas, injetas no sangue de Otello a desconfiança, patrocinas a intriga nacional. 

Poder-se-ia encontrar em ti o personagem Sacripante. Uma observação acurada, entretanto, revela mais um Silvério dos Reis das artes cênicas. Certa vez, me disse Henfil: ”o pior humorista é o que vende sua comédia aos canalhas que fazem o povo chorar”. Simples, didático, serve à elaboração de um código de ética de tua categoria.

Pois, tua notícia deturpada do embate, devotado truão, mostrou-se cômico engodo. Foi lá, teu embusteiro ”truco-lento” dar com as fuças na parede. Saiu do campo laureado e enganado, pior que Pirro. Este, menos imbecil, admitiu que a vitória contra os romanos fora uma tragédia, o prólogo de sua ruína.

Portanto, o exemplo da derrota também te serve. Decisivamente, ainda que te gabes, jamais superaste Paulo Francis, o bobo da corte mais destro nessas artes de sabujo-rabujo. E se cultivas alguma pretensão de hegemonia, te sugiro mover o pescocinho atrofiado. Pilantrinhas peraltas, como Mainardi e Azevedo, emparelham já contigo, disputam hidrofobicamente a suprema magistratura da bufonaria. 

E, percebe truão, que a dupla tonto-fascista não te fica a dever: são também inescrupulosos, traiçoeiros e carregam a poderosa energia do ressentimento, sem contar que igualmente migraram do fracasso profissional para a aventura mercenária midiática. 

Por fim, adorável truão, ajusta o relógio da tua soberba. Não é hora de celebrar a ignomínia convertida em comédia.  Nem é momento de levantar a horda de rufiões da ”ética” para cantar a vitória restauracionista. Para além dos simulacros do teu moralismo cínico, lambuzado de paroxismos impróprios, exercita-se o sabre do julgamento público, implacável, aquele cuja lâmina é afiada pelo tempo. Subiram os letreiros… Perdeste o charme. Perdeste a graça.

Mauro Carrara – Jornalista